segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Cabala de Gershom Scholem


Como a postagem desta semana trata de religião, vou comentar o livro Cabala de Gershom Scholem. Este livro compõe a coleção Judaica, sendo o volume 9 da série e foi um presente maravilhoso que recebi de meu amigo Reginaldo Leite que, assim como eu, é estudioso da tradição filosófica e metafísica judaica, a Cabala.

O grande mérito deste livro é a capacidade incontestável de Scholem de desmistificar a Cabala. No meio místico, há uma supervalorização da Cabala como se ali estivesse revelada a verdade mais pura e absoluta, uma verdade que a tudo curaria e a todos daria poderes superiores. Scholem é judeu, mas não deixa nunca o seu lado científico de lado e chega mesmo a afirmar que o desenvolvimento da Cabala possui sua origem numa ligação com as escolas helenísticas e cristãs.

Ele sustenta, assim como grande número de estudiosos, que a influência grega na formação dos conceitos cabalísticos é enorme e que estão presentes nas seitas marginais do judaísmo rabínico – ha-minim. A Cabala, então, possui traços acentuadamente neoplatônicos e isso já podemos encontrar nas obras de Filon de Alexandria que foi um pensador do século I que desenvolveu suas doutrinas na junção do pensamento helenístico à luz da tradição bíblica, especialmente da figura de Moisés.

Contudo, Scholem está muito ciente da originalidade dos pensadores judeus. A Cabala não é uma simples justaposição do neoplatonismo sobre a tradição judaica. A justaposição existe, mas apenas para enriquecer a metafísica judaica e criar novas explicações para questões antigas dentro da tradição religiosa: a questão da existência de deus, a criação do universo, a essência da alma, a origem da vida espiritual, a moral e a teleologia, o lugar do mal, etc.

Scholem trata de modo claro e preciso a tradição cabalística, explicando o lugar do Sefer Ietsirah nesta tradição – especificamente a gnose judaica – e os livros subseqüentes que traduzem os ideais de suas doutrinas: o Zohar, o Sefer ha-Bahir, o Kitah Al-Anwar, o Midrash Avkir e Konen, etc.

Outro grande mérito de Scholem é explicar com grande clareza outro ponto muito obscuro dentro da tradição cabalística: a Árvore da Vida com seus 22 caminhos e suas 10 Sefirot. A Árvore da Vida pode ser entendida como a planta do Universo e da mente na tradição cabalísitica e Scholem esmiúça com olhar clínico os caminhos e as definições metafísicas das Sefirot. De fato, a semelhança com a concepção platônica de mundo é gritante e Scholem não quer esconder esta influência.

Para quem não possui nenhum conhecimento em Cabala ou estuda seus livros principais e não entende quase nada, recomendo a leitura deste excelente livro de Scholem. O leitor encontrará neste livro explicações muito bem elaboradas sobre as principais ideias cabalísticas: Ein-Sof, Sefirot, tsimtsum, kelim, reshimu, tikun, nefesh, milu’im, tohu, etc. Scholem baseou esta obra nos principais verbetes de sua Encyclopaedia Judaica, daí o caráter didático e claro com que ele trata de termos que, às vezes, parecem ininteligíveis.

Por fim, Scholem trata de algumas personalidades ilustres dentro da tradição cabalística como Gerona, Cardozo, Gikatilla, Luria e Moisés Ben Shem Tov de Leon. Um livro excepcional em todas as suas dimensões e que recomendo veementemente para todo estudante do pensamento humano, seja de caráter místico ou não.


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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Nexus de Henry Miller


Henry Miller é mais conhecido por seus romances Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio. Assim como Bukowski, que em seus livros fala sempre quase a mesma coisa, Miller se repete ad infinitum em seus livros: relações amorosas amargas, amigos que ele finge odiar, uma superioridade forçada e um espírito burguês que se quer proletário.

Mas há um momento em que Miller para de fingir e decide ser um escritor honesto: trata-se da trilogia A Crucificação Encarnada (Sexus, Plexus e Nexus). Como os títulos dos livros indicam, Miller aborda em cada um os problemas fundamentais da moral platônica, ou melhor, dos lugares em que a alma aparece no corpo de modo específico. Sexus trata da animalidade, da atração e do desejo. Plexus da vontade, da fome e da desilusão e Nexus dos emaranhados e lugares obscuros da mente.

É no terceiro tomo que encontro o melhor de Miller. Este é um livro que de vez em quando me pego relendo-o. A vida, a intensidade, a paixão, as análises, os personagens, as ruas, as dificuldades da vida são aqui magistralmente registradas através de um olhar clínico e que está prestes a atingir a sabedoria. Mas Miller, como citei antes, é honesto nesta trilogia e não descamba para uma aura que ele mesmo sabe impossível de alcançar.

O início do romance deve despontar entre os grandes inícios da literatura e já basta a postagem inteira (e essa vai para Léo, Flávio Minno e Dom Jairo, é claro): “Uuf!Uuf uuf! Uuf! Uuf! Ladrando na noite. Ladrando, ladrando. Guincho, mas ninguém responde. Grito, mas nem sequer existe eco. ‘Que quer – o Oriente de Xerxes ou o Oriente de Cristo?’. Sozinho – com eczema no cérebro. Sozinho, afinal. Que maravilhoso! Apenas não era o que eu esperava. Se ao menos eu estivesse sozinho com Deus! Uuf! Uuf uuf! Olhos cerrados, evoco a imagem dela. Aí vem ela, flutuando no escuro, uma máscara emergindo no nevoeiro: a bouche de Tilla Durieux, como um arco; branca, dentes uniformes; olhos escurecidos pelo rímel, negros como ébano. A atriz dos Cárpatos e os telhados de Viena. Erguendo-se, qual Vênus, dos baixios de Brooklyn”.

Se a tentativa literária de Miller era retratar o homem inteiro – e ele estava bem ciente de que suas erupções sexuais eram necessárias neste processo – então creio não errar quando afirmo que em Nexus Miller encontrou a fórmula. O homem – ou seja, ele mesmo – é retratado em toda a sua dimensão, sem subterfúgios e sem vaidades desnecessárias. Creio que este é o ápice do amadurecimento de Miller como escritor.

Num assomo excepcional de lucidez, Miller indaga: “A grande questão era essa pergunta eterna, aparentemente irrespondível: que tenho a dizer que ainda não foi dito, e milhares de vezes, por homens infinitamente mais dotados? Seria uma manifestação aguda do ego, essa necessidade coercitiva de ser ouvido? De que maneira eu era único? Pois, se não fosse único, então seria como acrescentar um zero a uma incalculável cifra astronômica”.

O reconhecimento de suas limitações já é um grande passo para dizer algo novo quando se tem talento. Na busca pela originalidade literária, Miller encontrou a si mesmo e, mergulhando cada vez mais fundo, teve muito que dizer.

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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Enterro do Diabo de Gabriel García Marquez


Creio que quase todos concordarão com a afirmação de que a obra-prima de García Marquez é o livro Cem Anos de Solidão. A saga de Macondo, contudo, surge já no primeiro livro do escritor colombiano: O Enterro do Diabo. Este pequeno livro conta uma estória que se passa através de 25 anos e que é narrada através das vozes interiores de três personagens: um menino que inicia o livro contando sua experiência de ir a um funeral e ver um morto pela primeira vez, um velho coronel (avô do menino) que vaga por suas lembranças e Isabel, sua filha, que possui um olhar peculiar sobre a realidade e os acontecimentos que a cercam.

Apesar de ser o primeiro livro de García Marquez, já estão ali os elementos que demonstram seu domínio da arte narrativa. O início do livro - na voz do menino - é magistral: “Pela primeira vez vi um cadáver. É quarta-feira, mas sinto como se fosse domingo porque não fui á escola e me fizeram vestir esta roupa de veludo verde que me aperta em algum lugar. Levado pela mão de mamãe e seguindo meu avô, que tateia a cada passo com a bengala para não tropeçar nas coisas (ele não enxerga bem na penumbra, e além disso capenga), passei diante do espelho da sala e me vi de corpo inteiro, vestido de verde e com este laço branco e engomado que me aperta de um lado do pescoço. Vi-me na redonda lua manchada e pensei: ‘Este sou eu, como se hoje fosse domingo’”.

O processo mnemônico adotado por Marquez imprime ao romance uma característica própria da arte impressionista. Assim como Proust que compõe seu universo literário através da lembrança, Marquez elabora seu enredo através de três memórias diferentes, mas que se intercambiam nas referências objetivas de um mesmo mundo. O centro dessas memórias é o enterro de um médico que cometeu suicídio.

Como o médico se enforcou, a população de Macondo decide não enterrar o pobre cadáver. Marquez utiliza-se de uma referência conhecida: o cadáver de Policine na peça Antígona de Sófocles. Foram os homens do coronel que avistaram o enforcado e o trazem até ele. Há uma indecisão em relação ao destino do morto. Pensa o coronel: “mesmo que me repugnasse tratar um morto dessa forma, ultrajar a carne indefesa, perturbar um homem pela primeira vez tranqüilo dentro do seu caixão; mesmo que o fato de remover um cadáver que repousa serena e merecidamente em seu ataúde não fosse contra os meus princípios, teria mandado pendurá-lo de novo”.

O morto ou seu espectro paira na cidade e toma parte nos afazeres cotidianos. Os personagens narram o dia a dia de Macondo através de impressões situadas nesta relação. O morto representa a presença da morte dentro da própria vida. Há uma ampulheta invisível que mapeia e dita o ritmo das coisas: “Há um minuto em que a sesta se esgota. Até a secreta, recôndita, minúscula atividade dos insetos cessa nesse preciso instante; detém-se o curso da natureza; a criação cambaleia na beira do caos e as mulheres se levantam, babando com a flor do travesseiro bordada na face, sufocadas pela temperatura e pelo rancor; e pensam: ‘Ainda é quarta-feira em Macondo’”.

A referência ao dia do enterro dá lugar às lembranças do próprio morto: “Agora o ataúde está fechado, mas eu me lembro da cara do morto. Retive-a com tanta precisão que, se olho para o muro, vejo os olhos abertos, as faces esticadas e cinzentas como a terra úmida, a língua mordida de um lado da boca. Isso me causa uma ardente sensação de intranqüilidade”.

Marquez inaugura neste pequeno romance a sua mitologia de Macondo. Como livro de um escritor iniciante, há altos e baixos, é claro, mas sua capacidade de criar um universo único a partir da memória dos três personagens é digna de nota. Sua inventividade literária já está presente aqui e, como afirmei inicialmente, seu gênio criativo já demonstrava um grande domínio da arte de escrever.


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domingo, 8 de agosto de 2010

Primeiro Amor de Samuel Beckett


O escritor irlandês Samuel Beckett é mais conhecido no Brasil por sua peça Esperando Godot e por seu romance Molloy. Apesar de sua língua nativa ser o inglês e de diversas obras suas serem compostas neste idioma, Beckett possuía uma grande paixão e domínio pelo idioma francês. Essa paixão e esse domínio o levaram a compor um romance curto e magnífico: Premier Amour.

Escrito em 1945, este pequeno romance segue uma tendência dominante nos escritores do Nouveau Roman, ou seja, dissociar as pessoas dos objetos que as rodeiam, mas sempre tentando buscar uma solução para este distanciamento ou, ao menos, certa conciliação possível.

A narrativa principia com a incursão do personagem principal caminhando por um cemitério, procurando o túmulo de seu pai para descobrir qual a idade em que ele havia falecido. Suas impressões sobre o local são peculiares: “O odor dos cadáveres, que sinto claramente sob o cheiro da grama e do humo, não me é desagradável. Um pouco açucarado demais, talvez, um pouco atordoante, mas muito preferível ao dos vivos, das axilas, dos pés, dos cus, dos prepúcios cheios de ceroto e dos óvulos gorados. E quando os restos de meu pai colaboram nesse odor, por modestamente que seja, pouco falta para que venham lágrimas aos olhos”.

Passeando entre as lápides e recolhendo as inscrições gravadas nas pedras, ele pensa no seu epitáfio que lhe agrada muito mais do que seus outros escritos. O epitáfio diz: “Ci-gît qui y échappa tant / Qu´il n´en échappe que maintenant”. Ou seja: Aqui jaz quem tanto dela escapou / Que dela só escapa agora.

Mas surge na vida deste solitário que vaga pelos cemitérios uma mulher que mudará os rumos de sua solidão. “Conheci-a num banco, à margem do canal, de um dos canais, pois nossa cidade tem dois, mas não consigo nunca distinguí-los [...] Tinha uma voz desafinada mas agradável. Percebi a alma que se cansa logo e não conclui nunca nada, que é de todas talvez a menos chata”.

O nosso anti-herói, entretanto, parece não desejar uma relação amorosa. De fato, ele a evita: “A coisa que me interessava a mim, rei sem súditos, da qual a posição de minha carcaça era apenas o mais longínquo e fútil dos reflexos, era a supinação cerebral, o torpor da ideia do eu e da ideia desse pequeno resíduo de ninharias envenenantes a que se dá o nome de não-eu, e mesmo de mundo, por preguiça”.

Ele, apesar de vinte e cinco anos (como ele mesmo diz), ainda sente tesão e sua pseudo companheira percebe sua ereção. Sua visão do amor, entretanto, é bem distante de alguma abordagem romântica: “O que chamam de amor é o exílio, com um cartão-postal da terra de vez em quando, eis meu sentimento naquela noite”. Seu distanciamento e indiferença são acentuados: “Quando ela terminou e meu eu meu, o domesticado, se reconstituiu com a ajuda de uma breve inconsciência, eu me encontrei só”.

Sua solidão e exílio voluntários são perturbados pela insistência com que sua pseudo companheira, Lulu, insiste em vê-lo. Ele quer apenas distância deste primeiro amor, nada de compromissos ou vínculos duradouros: “Disse-lhe que viesse com menos frequência, muito menos frequência, que não viesse de todo se pudesse, e se não, o menos possível”.

Beckett elabora o distanciamento das pessoas e destas com as coisas e seus lugares numa tragédia existencial que perpassa a solidão, o sarcasmo e a indiferença de seus personagens. Este perpétuo conflito com as coisas e as pessoas é o ponto central da compreensão beckettiana para a existência.

Além do mais, é impressionante o domínio que ele possui do francês. Escrever com tal desenvoltura num idioma estrangeiro é uma tarefa gigantesca – aquela mesma tarefa que levou o escritor polonês Joseph Conrad a escrever apenas em inglês. E, mais ainda, com tanto apuro técnico e estilístico.


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sábado, 31 de julho de 2010

A Genealogia da Moral de Nietzsche



Escreve Nietzsche na sua Genealogia da Moral: “Os doentes têm grande engenho para descobrir as causas ou pretextos da sua dor; geram-se nas suas suspeitas; o seu cérebro devaneia sobre as injúrias de que se julgam ser vítimas; examinam as entranhas do seu passado e do seu presente, para achar sombras e mistérios que lhes permitam embriagar-se de dolorosas desconfianças e da sua própria malícia abrem as suas antigas feridas, perdem sangue pelas cicatrizes, fazem sofrer aos amigos, à mulher, aos filhos, a todos os seus próximos. 'Eu sofro, alguém tem a culpa’. Assim discorrem todas as ovelhas. E então o pastor responde-lhes: ‘É verdade, minha ovelha; alguém tem a culpa; mas é tu mesma; os ‘teus pecados são a causa do teu mal’... Isto é muito atrevido, muito falso. Mas obtém-se um fim: ‘mudar a direção do ressentimento’”.

Esta obra de Nietzsche antecipa o Mal-Estar na Civilização de Freud e as ideias morais de Aleister Crowley. Nietzsche queria descobrir as raízes da moral judaico-cristã e chegou a entender que o “cristianismo é platonismo para o povo”, enquanto o próprio Platão lhe parecia um traidor da força originária da Grécia Antiga, indo para o Egito Antigo e aprendendo com os judeus de lá e não com o povo egípcio e seus sábios.

A síntese desta obra se encontra na proposição 195 de Para Além do Bem e do Mal: “Os judeus – povo ‘nascido para a escravidão’, como dizia Tácito e todo o mundo antigo, ‘o povo eleito entre os povos’, como eles próprios dizem e crêem – os judeus realizaram aquele milagre da inversão dos valores graças ao qual a vida na terra recebeu, durante uns milênios, um novo e perigoso atrativo: seus profetas fundiram ‘rico’, ‘ímpio’, ‘mau’, ‘violento’, ‘sensual’ numa só palavra e deram pela primeira vez um sentido injurioso à palavra ‘mundo’. Reside nessa inversão de valores – em que convém empregar-se a palavra ‘pobre’ como sinônimo de ‘santo’ e de ‘amigo’ – a importância do povo judaico. A rebelião dos escravos na moral começa com os judeus.

Como filólogo, Nioetzsche se interessa pela hermenêutica das palavras bom e mau. Chega à conclusão de que “bom” (agathos) referia-se ao “matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se tinham por homens de uma classe superior”. Esses superiores eram os ricos, os donos, os chefes, os poderosos. Depois, explica que “a palavra kakos, como a deilos (que designa o plebeu por oposição ao agathos) denota covardia e indica a direção em que se deveria procurar a etimologia de agathos, palavra que pode-se interpretar de muitas maneiras). O latim malus (que eu relaciono com melas, ‘negro’) pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos (hic niger est), o autóctone pré-ariano do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos loiros arianos”.

Claro que os detratores de Nietzsche lançaram mão de argumentos ad hominem para distorcer as palavras do filósofo. Primeiro, associaram Nietzsche a um louco solitário e que não sabia do que estava falando. Isto soa tão estranho: logo Nietzsche, um dos homens mais lúcidos que já andaram sobre a Terra. E depois associaram sua filosofia com o Nazismo. Pior ainda: um deformado intelectual como Hitler conhecia Nietzsche muito mal e provavelmente ficou completamente confuso lendo Zaratustra. Para tanto, basta ler Crepúsculo dos Ídolos quando Nietzsche fala do que os alemães estão na iminência de perder.

Nietzsche não é um escritor fácil, apesar de ser o “filósofo de todo jovem”. Sua Genealogia da Moral é um desses raros momentos em que seu bom humor e sua verve mais sarcástica estão à flor da pele, tornando-o mais palatável para gostos melindrados. Livro essencial para que possamos pensar um pouco melhor a moral de nossa civilização e entender um pouco mais os labirintos sutis e profundos desta moral atávica em que estamos mergulhados até o pescoço.



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domingo, 25 de julho de 2010

Sagarana de Guimarães Rosa


Numa carta para João Condé, Guimarães Rosa fala dos contos do seu livro Sagarana. O escritor mineiro fala de sua predileção pelo conto Corpo Fechado, mas não nega sua admiração pelo conto A hora e vez de Augusto Matraga: “História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir”.

Não há como discordar do autor. De fato, Sagarana – como acontece com quase todo livro de contos – possui momentos altos e baixos. Mas o cume desta montanha literária reside mesmo no conto A hora e vez de Augusto Matraga. A forma conquistada por Guimarães Rosa é original e desanda criatividade por todos os lados, lembrando um pouco as concepções de Coelho Netto (penso aqui no conto Mau Sangue) e o alcance de uma literatura profundamente brasileira e inovadora.

O livro valeria apenas por este conto. Os outros são bons, mas Matraga é uma preciosidade de acerto na forma e no enredo. Augusto Matraga, o Nhô Augusto – o homem, é abandonado por sua esposa, Siá Dionóra. Ela o troca por Seu Ovídio que a convence a fugir: “Dionóra, vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém toma vocês de mim!”.

Para completar a desgraça de Nhô Augusto, o Major Consilva arregimenta seus homens para emboscar Augusto e matá-lo. Quim Recadeiro traz ambas as notícias para o patrão. Quando fala da esposa que fugiu com Ovídio, ele diz: “Eu podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue só p’ra o dono, e pensei que o senhor podia não gostar”. O que arremeda Nhô Augusto: “Fez na regra, e feito! Chama os meus homens!”.

Mas os homens de Nhô Augusto debandaram para o lado do Major Consilva. Explica Quim: “Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas todos estão falando que o senhor não possui mais nada, perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... – o senhor dê o perdão p’r’a minha boca, que eu só falo o que é perciso – estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação”.

Nhô Augusto não se intimida e antes de ir à Mombuca, para matar Ovídio e Dionóra, decide cair com o Major Consilva e seus capangas. Chegando à casa do Major, este zomba de Augusto e diz que seu tempo de bem-bom acabara. Os capangas do Major pulam em cima de Augusto e com porretes lhe dão uma grande surra e o jogam num barranco: “[...] o Nhô Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue”.

Para humilhar ainda mais a vítima, os capangas “abrasaram o ferro com a marca do gado do Major – que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto”.

Humilhado e quase morto, Augusto é salvo por um casal de pretos que morava na boca do brejo em que ele fora largado. Augusto implora por sua morte: “Me matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor...”. O casal não atende seu pedido e decidem cuidar daquela pobre alma. A preta velha que o hospeda em sua casa o analisa: “Deus que me perdoe, - resmungou a preta, - mas este homem deve ser ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só braveza de matar e sangrar.. E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi!”.

Augusto começa a conviver com o casal e curado de suas feridas segue a vida, tomado por uma “tristeza mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo”. Porém, um dos piores males que o assola é a culpa pelo que fez, pensando se Deus terá piedade dele diante de tantas ruindades que fez. Um padre o visita e o aconselha a rezar e trabalhar, avisando-o de que “cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”.

Ele tentava levar a vida esquecendo-se de seu passado, de sua natureza, de suas maldades. O mais espetacular deste conto é como Guimarães Rosa narra a transformação de Nhô Augusto e como algo silente, oculto e poderoso ainda dormita em sua alma. Nhô Augusto, apesar de tentar ser outra pessoa, ainda possui muito de si mesmo.

Até que num certo dia, o casal de pretos recebe a visita de Joãozinho Bem-Bem e seu bando. O chefe percebe a verdadeira natureza de Augusto e o convida para tomar parte de seu grupo. Mas a oferta é recusada: “Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem”. O chefe parte com seu bando, deixando Augusto com seus pensamentos, suas lembranças e tristezas.

O final do conto, num encontro trágico entre Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem, deve figurar como uns dos melhores finais da literatura brasileira. O livro é excelente, mas considero este conto um dos melhores da nossa literatura. Repito: vale já por este conto.






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sexta-feira, 16 de julho de 2010

Antologia poética de Wallace Stevens



Considero Wallace Stevens (1879-1955) um dos maiores poetas americanos de todos os tempos. E um dos meus poetas favoritos. A razão deste amor para com a obra de Stevens repousa, basicamente, em dois pontos centrais:

1. Sua capacidade incomum de descrever ambientes, paisagens e pessoas, sempre acentuando o que há de denso ou leve em suas composições, a dualidade latente das coisas que trafegam entre o claro e o escuro, entre o assombroso e o trivial, além de marcar com uma voz personalíssima as cores, as sombras, os trejeitos de suas personagens, elaborando um universo muito particular em que o homem e a natureza se tocam constantemente, em que o movimento eterno das coisas pode ser matizado pela diferença que compõe um mundo maior: “É esta a origem das mudanças / Inverno e primavera, em fria cópula / Engendram os pormenores do enlevo”.

2. Stevens possui um olhar metafísico muito interessante sobre as coisas. Na sua poesia, a metafísica não busca paragens inalcançáveis, angelicais. Ao contrário, o poder de sua metafísica reside exatamente em trazer para o plano concreto a visão humana de mundo, dando-lhe um colorido muito específico e que constrói novas realidades plenas de beleza: “Homem curvado sobre o violão, / Como se fosse foice. Dia verde. / Disseram: ‘É azul o teu violão, / Não tocas as coisas tais como são’. / E o homem disse: ‘As coisas tais como são / Se modificam sobre o violão’. / E eles disseram: ‘Toca uma canção / Que esteja além de nós, mas seja nós, / No violão azul, toca a canção / Das coisas justamente como são’.”

A célebre assertiva de que toda tradução é uma traição, parece não ganhar muita validade nesta edição da Companhia das Letras. Paulo Henrique Brito fez uma das melhores traduções de poemas que já conheci – lembrando aquela paixão de Millôr Fernandes ao traduzir Shakespeare. Brito domina muito bem o ritmo da poesia de Stevens e consegue transpor com felicidade os meandros mais sutis do dizer do poeta.

Mesmo quando este dizer é intraduzível, ele compõe elementos novos que em quase nada ficam a dever ao original – mas, como sempre, o ideal seria ler no original, é claro. Um exemplo interessante foi sua tarefa de traduzir Sea Surface Full of Clouds. Numa tradução direta, teríamos: A superfície do mar cheia de nuvens. A ideia de Brito: Marinha, com nuvens.

Os versos iniciais deste poema magistral também não se prestam para uma tradução direta: “In that November off Tehuantepec, / The slopping of the sea grew still one night / And in the morning summer hued the deck / And made one think of rosy chocolate / And gilt umbrellas. Paradisal green / Gave suavity to the perplexed machine / Of ocean, which like limpid water lay”.

A saída de Brito: “Era novembro, em Tehuantepec / E o marulhar do mar calou-se à noite. / Pela manhã desceu sobre o convés / Uma cor morna, como chocolate / Âmbar, como sombrinhas amarelas. /Um verde-éden suavizava a máquina / Do oceano, de uma limpidez perplexa.”

Brito optou traduzir gilt umbrellas (literalmente, sombrinhas ou guarda-chuvas dourados) por sombrinhas amarelas e paradisal green (literalmente verde paradisíaco) por verde-éden. Estas escolhas dão dinâmica à tradução e mantém as idéias do poeta. Mas, volto a dizer, o ideal seria que pudéssemos ler o original. Se isso não é possível, então o trabalho de um bom tradutor deve ser reconhecido.

É uma pena que Wallace Stevens seja tão desconhecido no Brasil. Creio que esta edição da Companhia das Letras com tradução de Paulo Brito seja a única edição brasileira de seus poemas. Há, também, uma edição portuguesa que traz alguns poemas de Stevens. É pouco, é fato, mas já é, assim acredito, um ótimo começo.



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