segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Enterro do Diabo de Gabriel García Marquez


Creio que quase todos concordarão com a afirmação de que a obra-prima de García Marquez é o livro Cem Anos de Solidão. A saga de Macondo, contudo, surge já no primeiro livro do escritor colombiano: O Enterro do Diabo. Este pequeno livro conta uma estória que se passa através de 25 anos e que é narrada através das vozes interiores de três personagens: um menino que inicia o livro contando sua experiência de ir a um funeral e ver um morto pela primeira vez, um velho coronel (avô do menino) que vaga por suas lembranças e Isabel, sua filha, que possui um olhar peculiar sobre a realidade e os acontecimentos que a cercam.

Apesar de ser o primeiro livro de García Marquez, já estão ali os elementos que demonstram seu domínio da arte narrativa. O início do livro - na voz do menino - é magistral: “Pela primeira vez vi um cadáver. É quarta-feira, mas sinto como se fosse domingo porque não fui á escola e me fizeram vestir esta roupa de veludo verde que me aperta em algum lugar. Levado pela mão de mamãe e seguindo meu avô, que tateia a cada passo com a bengala para não tropeçar nas coisas (ele não enxerga bem na penumbra, e além disso capenga), passei diante do espelho da sala e me vi de corpo inteiro, vestido de verde e com este laço branco e engomado que me aperta de um lado do pescoço. Vi-me na redonda lua manchada e pensei: ‘Este sou eu, como se hoje fosse domingo’”.

O processo mnemônico adotado por Marquez imprime ao romance uma característica própria da arte impressionista. Assim como Proust que compõe seu universo literário através da lembrança, Marquez elabora seu enredo através de três memórias diferentes, mas que se intercambiam nas referências objetivas de um mesmo mundo. O centro dessas memórias é o enterro de um médico que cometeu suicídio.

Como o médico se enforcou, a população de Macondo decide não enterrar o pobre cadáver. Marquez utiliza-se de uma referência conhecida: o cadáver de Policine na peça Antígona de Sófocles. Foram os homens do coronel que avistaram o enforcado e o trazem até ele. Há uma indecisão em relação ao destino do morto. Pensa o coronel: “mesmo que me repugnasse tratar um morto dessa forma, ultrajar a carne indefesa, perturbar um homem pela primeira vez tranqüilo dentro do seu caixão; mesmo que o fato de remover um cadáver que repousa serena e merecidamente em seu ataúde não fosse contra os meus princípios, teria mandado pendurá-lo de novo”.

O morto ou seu espectro paira na cidade e toma parte nos afazeres cotidianos. Os personagens narram o dia a dia de Macondo através de impressões situadas nesta relação. O morto representa a presença da morte dentro da própria vida. Há uma ampulheta invisível que mapeia e dita o ritmo das coisas: “Há um minuto em que a sesta se esgota. Até a secreta, recôndita, minúscula atividade dos insetos cessa nesse preciso instante; detém-se o curso da natureza; a criação cambaleia na beira do caos e as mulheres se levantam, babando com a flor do travesseiro bordada na face, sufocadas pela temperatura e pelo rancor; e pensam: ‘Ainda é quarta-feira em Macondo’”.

A referência ao dia do enterro dá lugar às lembranças do próprio morto: “Agora o ataúde está fechado, mas eu me lembro da cara do morto. Retive-a com tanta precisão que, se olho para o muro, vejo os olhos abertos, as faces esticadas e cinzentas como a terra úmida, a língua mordida de um lado da boca. Isso me causa uma ardente sensação de intranqüilidade”.

Marquez inaugura neste pequeno romance a sua mitologia de Macondo. Como livro de um escritor iniciante, há altos e baixos, é claro, mas sua capacidade de criar um universo único a partir da memória dos três personagens é digna de nota. Sua inventividade literária já está presente aqui e, como afirmei inicialmente, seu gênio criativo já demonstrava um grande domínio da arte de escrever.


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