segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Cabala de Gershom Scholem


Como a postagem desta semana trata de religião, vou comentar o livro Cabala de Gershom Scholem. Este livro compõe a coleção Judaica, sendo o volume 9 da série e foi um presente maravilhoso que recebi de meu amigo Reginaldo Leite que, assim como eu, é estudioso da tradição filosófica e metafísica judaica, a Cabala.

O grande mérito deste livro é a capacidade incontestável de Scholem de desmistificar a Cabala. No meio místico, há uma supervalorização da Cabala como se ali estivesse revelada a verdade mais pura e absoluta, uma verdade que a tudo curaria e a todos daria poderes superiores. Scholem é judeu, mas não deixa nunca o seu lado científico de lado e chega mesmo a afirmar que o desenvolvimento da Cabala possui sua origem numa ligação com as escolas helenísticas e cristãs.

Ele sustenta, assim como grande número de estudiosos, que a influência grega na formação dos conceitos cabalísticos é enorme e que estão presentes nas seitas marginais do judaísmo rabínico – ha-minim. A Cabala, então, possui traços acentuadamente neoplatônicos e isso já podemos encontrar nas obras de Filon de Alexandria que foi um pensador do século I que desenvolveu suas doutrinas na junção do pensamento helenístico à luz da tradição bíblica, especialmente da figura de Moisés.

Contudo, Scholem está muito ciente da originalidade dos pensadores judeus. A Cabala não é uma simples justaposição do neoplatonismo sobre a tradição judaica. A justaposição existe, mas apenas para enriquecer a metafísica judaica e criar novas explicações para questões antigas dentro da tradição religiosa: a questão da existência de deus, a criação do universo, a essência da alma, a origem da vida espiritual, a moral e a teleologia, o lugar do mal, etc.

Scholem trata de modo claro e preciso a tradição cabalística, explicando o lugar do Sefer Ietsirah nesta tradição – especificamente a gnose judaica – e os livros subseqüentes que traduzem os ideais de suas doutrinas: o Zohar, o Sefer ha-Bahir, o Kitah Al-Anwar, o Midrash Avkir e Konen, etc.

Outro grande mérito de Scholem é explicar com grande clareza outro ponto muito obscuro dentro da tradição cabalística: a Árvore da Vida com seus 22 caminhos e suas 10 Sefirot. A Árvore da Vida pode ser entendida como a planta do Universo e da mente na tradição cabalísitica e Scholem esmiúça com olhar clínico os caminhos e as definições metafísicas das Sefirot. De fato, a semelhança com a concepção platônica de mundo é gritante e Scholem não quer esconder esta influência.

Para quem não possui nenhum conhecimento em Cabala ou estuda seus livros principais e não entende quase nada, recomendo a leitura deste excelente livro de Scholem. O leitor encontrará neste livro explicações muito bem elaboradas sobre as principais ideias cabalísticas: Ein-Sof, Sefirot, tsimtsum, kelim, reshimu, tikun, nefesh, milu’im, tohu, etc. Scholem baseou esta obra nos principais verbetes de sua Encyclopaedia Judaica, daí o caráter didático e claro com que ele trata de termos que, às vezes, parecem ininteligíveis.

Por fim, Scholem trata de algumas personalidades ilustres dentro da tradição cabalística como Gerona, Cardozo, Gikatilla, Luria e Moisés Ben Shem Tov de Leon. Um livro excepcional em todas as suas dimensões e que recomendo veementemente para todo estudante do pensamento humano, seja de caráter místico ou não.


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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Nexus de Henry Miller


Henry Miller é mais conhecido por seus romances Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio. Assim como Bukowski, que em seus livros fala sempre quase a mesma coisa, Miller se repete ad infinitum em seus livros: relações amorosas amargas, amigos que ele finge odiar, uma superioridade forçada e um espírito burguês que se quer proletário.

Mas há um momento em que Miller para de fingir e decide ser um escritor honesto: trata-se da trilogia A Crucificação Encarnada (Sexus, Plexus e Nexus). Como os títulos dos livros indicam, Miller aborda em cada um os problemas fundamentais da moral platônica, ou melhor, dos lugares em que a alma aparece no corpo de modo específico. Sexus trata da animalidade, da atração e do desejo. Plexus da vontade, da fome e da desilusão e Nexus dos emaranhados e lugares obscuros da mente.

É no terceiro tomo que encontro o melhor de Miller. Este é um livro que de vez em quando me pego relendo-o. A vida, a intensidade, a paixão, as análises, os personagens, as ruas, as dificuldades da vida são aqui magistralmente registradas através de um olhar clínico e que está prestes a atingir a sabedoria. Mas Miller, como citei antes, é honesto nesta trilogia e não descamba para uma aura que ele mesmo sabe impossível de alcançar.

O início do romance deve despontar entre os grandes inícios da literatura e já basta a postagem inteira (e essa vai para Léo, Flávio Minno e Dom Jairo, é claro): “Uuf!Uuf uuf! Uuf! Uuf! Ladrando na noite. Ladrando, ladrando. Guincho, mas ninguém responde. Grito, mas nem sequer existe eco. ‘Que quer – o Oriente de Xerxes ou o Oriente de Cristo?’. Sozinho – com eczema no cérebro. Sozinho, afinal. Que maravilhoso! Apenas não era o que eu esperava. Se ao menos eu estivesse sozinho com Deus! Uuf! Uuf uuf! Olhos cerrados, evoco a imagem dela. Aí vem ela, flutuando no escuro, uma máscara emergindo no nevoeiro: a bouche de Tilla Durieux, como um arco; branca, dentes uniformes; olhos escurecidos pelo rímel, negros como ébano. A atriz dos Cárpatos e os telhados de Viena. Erguendo-se, qual Vênus, dos baixios de Brooklyn”.

Se a tentativa literária de Miller era retratar o homem inteiro – e ele estava bem ciente de que suas erupções sexuais eram necessárias neste processo – então creio não errar quando afirmo que em Nexus Miller encontrou a fórmula. O homem – ou seja, ele mesmo – é retratado em toda a sua dimensão, sem subterfúgios e sem vaidades desnecessárias. Creio que este é o ápice do amadurecimento de Miller como escritor.

Num assomo excepcional de lucidez, Miller indaga: “A grande questão era essa pergunta eterna, aparentemente irrespondível: que tenho a dizer que ainda não foi dito, e milhares de vezes, por homens infinitamente mais dotados? Seria uma manifestação aguda do ego, essa necessidade coercitiva de ser ouvido? De que maneira eu era único? Pois, se não fosse único, então seria como acrescentar um zero a uma incalculável cifra astronômica”.

O reconhecimento de suas limitações já é um grande passo para dizer algo novo quando se tem talento. Na busca pela originalidade literária, Miller encontrou a si mesmo e, mergulhando cada vez mais fundo, teve muito que dizer.

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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Enterro do Diabo de Gabriel García Marquez


Creio que quase todos concordarão com a afirmação de que a obra-prima de García Marquez é o livro Cem Anos de Solidão. A saga de Macondo, contudo, surge já no primeiro livro do escritor colombiano: O Enterro do Diabo. Este pequeno livro conta uma estória que se passa através de 25 anos e que é narrada através das vozes interiores de três personagens: um menino que inicia o livro contando sua experiência de ir a um funeral e ver um morto pela primeira vez, um velho coronel (avô do menino) que vaga por suas lembranças e Isabel, sua filha, que possui um olhar peculiar sobre a realidade e os acontecimentos que a cercam.

Apesar de ser o primeiro livro de García Marquez, já estão ali os elementos que demonstram seu domínio da arte narrativa. O início do livro - na voz do menino - é magistral: “Pela primeira vez vi um cadáver. É quarta-feira, mas sinto como se fosse domingo porque não fui á escola e me fizeram vestir esta roupa de veludo verde que me aperta em algum lugar. Levado pela mão de mamãe e seguindo meu avô, que tateia a cada passo com a bengala para não tropeçar nas coisas (ele não enxerga bem na penumbra, e além disso capenga), passei diante do espelho da sala e me vi de corpo inteiro, vestido de verde e com este laço branco e engomado que me aperta de um lado do pescoço. Vi-me na redonda lua manchada e pensei: ‘Este sou eu, como se hoje fosse domingo’”.

O processo mnemônico adotado por Marquez imprime ao romance uma característica própria da arte impressionista. Assim como Proust que compõe seu universo literário através da lembrança, Marquez elabora seu enredo através de três memórias diferentes, mas que se intercambiam nas referências objetivas de um mesmo mundo. O centro dessas memórias é o enterro de um médico que cometeu suicídio.

Como o médico se enforcou, a população de Macondo decide não enterrar o pobre cadáver. Marquez utiliza-se de uma referência conhecida: o cadáver de Policine na peça Antígona de Sófocles. Foram os homens do coronel que avistaram o enforcado e o trazem até ele. Há uma indecisão em relação ao destino do morto. Pensa o coronel: “mesmo que me repugnasse tratar um morto dessa forma, ultrajar a carne indefesa, perturbar um homem pela primeira vez tranqüilo dentro do seu caixão; mesmo que o fato de remover um cadáver que repousa serena e merecidamente em seu ataúde não fosse contra os meus princípios, teria mandado pendurá-lo de novo”.

O morto ou seu espectro paira na cidade e toma parte nos afazeres cotidianos. Os personagens narram o dia a dia de Macondo através de impressões situadas nesta relação. O morto representa a presença da morte dentro da própria vida. Há uma ampulheta invisível que mapeia e dita o ritmo das coisas: “Há um minuto em que a sesta se esgota. Até a secreta, recôndita, minúscula atividade dos insetos cessa nesse preciso instante; detém-se o curso da natureza; a criação cambaleia na beira do caos e as mulheres se levantam, babando com a flor do travesseiro bordada na face, sufocadas pela temperatura e pelo rancor; e pensam: ‘Ainda é quarta-feira em Macondo’”.

A referência ao dia do enterro dá lugar às lembranças do próprio morto: “Agora o ataúde está fechado, mas eu me lembro da cara do morto. Retive-a com tanta precisão que, se olho para o muro, vejo os olhos abertos, as faces esticadas e cinzentas como a terra úmida, a língua mordida de um lado da boca. Isso me causa uma ardente sensação de intranqüilidade”.

Marquez inaugura neste pequeno romance a sua mitologia de Macondo. Como livro de um escritor iniciante, há altos e baixos, é claro, mas sua capacidade de criar um universo único a partir da memória dos três personagens é digna de nota. Sua inventividade literária já está presente aqui e, como afirmei inicialmente, seu gênio criativo já demonstrava um grande domínio da arte de escrever.


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domingo, 8 de agosto de 2010

Primeiro Amor de Samuel Beckett


O escritor irlandês Samuel Beckett é mais conhecido no Brasil por sua peça Esperando Godot e por seu romance Molloy. Apesar de sua língua nativa ser o inglês e de diversas obras suas serem compostas neste idioma, Beckett possuía uma grande paixão e domínio pelo idioma francês. Essa paixão e esse domínio o levaram a compor um romance curto e magnífico: Premier Amour.

Escrito em 1945, este pequeno romance segue uma tendência dominante nos escritores do Nouveau Roman, ou seja, dissociar as pessoas dos objetos que as rodeiam, mas sempre tentando buscar uma solução para este distanciamento ou, ao menos, certa conciliação possível.

A narrativa principia com a incursão do personagem principal caminhando por um cemitério, procurando o túmulo de seu pai para descobrir qual a idade em que ele havia falecido. Suas impressões sobre o local são peculiares: “O odor dos cadáveres, que sinto claramente sob o cheiro da grama e do humo, não me é desagradável. Um pouco açucarado demais, talvez, um pouco atordoante, mas muito preferível ao dos vivos, das axilas, dos pés, dos cus, dos prepúcios cheios de ceroto e dos óvulos gorados. E quando os restos de meu pai colaboram nesse odor, por modestamente que seja, pouco falta para que venham lágrimas aos olhos”.

Passeando entre as lápides e recolhendo as inscrições gravadas nas pedras, ele pensa no seu epitáfio que lhe agrada muito mais do que seus outros escritos. O epitáfio diz: “Ci-gît qui y échappa tant / Qu´il n´en échappe que maintenant”. Ou seja: Aqui jaz quem tanto dela escapou / Que dela só escapa agora.

Mas surge na vida deste solitário que vaga pelos cemitérios uma mulher que mudará os rumos de sua solidão. “Conheci-a num banco, à margem do canal, de um dos canais, pois nossa cidade tem dois, mas não consigo nunca distinguí-los [...] Tinha uma voz desafinada mas agradável. Percebi a alma que se cansa logo e não conclui nunca nada, que é de todas talvez a menos chata”.

O nosso anti-herói, entretanto, parece não desejar uma relação amorosa. De fato, ele a evita: “A coisa que me interessava a mim, rei sem súditos, da qual a posição de minha carcaça era apenas o mais longínquo e fútil dos reflexos, era a supinação cerebral, o torpor da ideia do eu e da ideia desse pequeno resíduo de ninharias envenenantes a que se dá o nome de não-eu, e mesmo de mundo, por preguiça”.

Ele, apesar de vinte e cinco anos (como ele mesmo diz), ainda sente tesão e sua pseudo companheira percebe sua ereção. Sua visão do amor, entretanto, é bem distante de alguma abordagem romântica: “O que chamam de amor é o exílio, com um cartão-postal da terra de vez em quando, eis meu sentimento naquela noite”. Seu distanciamento e indiferença são acentuados: “Quando ela terminou e meu eu meu, o domesticado, se reconstituiu com a ajuda de uma breve inconsciência, eu me encontrei só”.

Sua solidão e exílio voluntários são perturbados pela insistência com que sua pseudo companheira, Lulu, insiste em vê-lo. Ele quer apenas distância deste primeiro amor, nada de compromissos ou vínculos duradouros: “Disse-lhe que viesse com menos frequência, muito menos frequência, que não viesse de todo se pudesse, e se não, o menos possível”.

Beckett elabora o distanciamento das pessoas e destas com as coisas e seus lugares numa tragédia existencial que perpassa a solidão, o sarcasmo e a indiferença de seus personagens. Este perpétuo conflito com as coisas e as pessoas é o ponto central da compreensão beckettiana para a existência.

Além do mais, é impressionante o domínio que ele possui do francês. Escrever com tal desenvoltura num idioma estrangeiro é uma tarefa gigantesca – aquela mesma tarefa que levou o escritor polonês Joseph Conrad a escrever apenas em inglês. E, mais ainda, com tanto apuro técnico e estilístico.


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sábado, 31 de julho de 2010

A Genealogia da Moral de Nietzsche



Escreve Nietzsche na sua Genealogia da Moral: “Os doentes têm grande engenho para descobrir as causas ou pretextos da sua dor; geram-se nas suas suspeitas; o seu cérebro devaneia sobre as injúrias de que se julgam ser vítimas; examinam as entranhas do seu passado e do seu presente, para achar sombras e mistérios que lhes permitam embriagar-se de dolorosas desconfianças e da sua própria malícia abrem as suas antigas feridas, perdem sangue pelas cicatrizes, fazem sofrer aos amigos, à mulher, aos filhos, a todos os seus próximos. 'Eu sofro, alguém tem a culpa’. Assim discorrem todas as ovelhas. E então o pastor responde-lhes: ‘É verdade, minha ovelha; alguém tem a culpa; mas é tu mesma; os ‘teus pecados são a causa do teu mal’... Isto é muito atrevido, muito falso. Mas obtém-se um fim: ‘mudar a direção do ressentimento’”.

Esta obra de Nietzsche antecipa o Mal-Estar na Civilização de Freud e as ideias morais de Aleister Crowley. Nietzsche queria descobrir as raízes da moral judaico-cristã e chegou a entender que o “cristianismo é platonismo para o povo”, enquanto o próprio Platão lhe parecia um traidor da força originária da Grécia Antiga, indo para o Egito Antigo e aprendendo com os judeus de lá e não com o povo egípcio e seus sábios.

A síntese desta obra se encontra na proposição 195 de Para Além do Bem e do Mal: “Os judeus – povo ‘nascido para a escravidão’, como dizia Tácito e todo o mundo antigo, ‘o povo eleito entre os povos’, como eles próprios dizem e crêem – os judeus realizaram aquele milagre da inversão dos valores graças ao qual a vida na terra recebeu, durante uns milênios, um novo e perigoso atrativo: seus profetas fundiram ‘rico’, ‘ímpio’, ‘mau’, ‘violento’, ‘sensual’ numa só palavra e deram pela primeira vez um sentido injurioso à palavra ‘mundo’. Reside nessa inversão de valores – em que convém empregar-se a palavra ‘pobre’ como sinônimo de ‘santo’ e de ‘amigo’ – a importância do povo judaico. A rebelião dos escravos na moral começa com os judeus.

Como filólogo, Nioetzsche se interessa pela hermenêutica das palavras bom e mau. Chega à conclusão de que “bom” (agathos) referia-se ao “matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se tinham por homens de uma classe superior”. Esses superiores eram os ricos, os donos, os chefes, os poderosos. Depois, explica que “a palavra kakos, como a deilos (que designa o plebeu por oposição ao agathos) denota covardia e indica a direção em que se deveria procurar a etimologia de agathos, palavra que pode-se interpretar de muitas maneiras). O latim malus (que eu relaciono com melas, ‘negro’) pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos (hic niger est), o autóctone pré-ariano do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos loiros arianos”.

Claro que os detratores de Nietzsche lançaram mão de argumentos ad hominem para distorcer as palavras do filósofo. Primeiro, associaram Nietzsche a um louco solitário e que não sabia do que estava falando. Isto soa tão estranho: logo Nietzsche, um dos homens mais lúcidos que já andaram sobre a Terra. E depois associaram sua filosofia com o Nazismo. Pior ainda: um deformado intelectual como Hitler conhecia Nietzsche muito mal e provavelmente ficou completamente confuso lendo Zaratustra. Para tanto, basta ler Crepúsculo dos Ídolos quando Nietzsche fala do que os alemães estão na iminência de perder.

Nietzsche não é um escritor fácil, apesar de ser o “filósofo de todo jovem”. Sua Genealogia da Moral é um desses raros momentos em que seu bom humor e sua verve mais sarcástica estão à flor da pele, tornando-o mais palatável para gostos melindrados. Livro essencial para que possamos pensar um pouco melhor a moral de nossa civilização e entender um pouco mais os labirintos sutis e profundos desta moral atávica em que estamos mergulhados até o pescoço.



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domingo, 25 de julho de 2010

Sagarana de Guimarães Rosa


Numa carta para João Condé, Guimarães Rosa fala dos contos do seu livro Sagarana. O escritor mineiro fala de sua predileção pelo conto Corpo Fechado, mas não nega sua admiração pelo conto A hora e vez de Augusto Matraga: “História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir”.

Não há como discordar do autor. De fato, Sagarana – como acontece com quase todo livro de contos – possui momentos altos e baixos. Mas o cume desta montanha literária reside mesmo no conto A hora e vez de Augusto Matraga. A forma conquistada por Guimarães Rosa é original e desanda criatividade por todos os lados, lembrando um pouco as concepções de Coelho Netto (penso aqui no conto Mau Sangue) e o alcance de uma literatura profundamente brasileira e inovadora.

O livro valeria apenas por este conto. Os outros são bons, mas Matraga é uma preciosidade de acerto na forma e no enredo. Augusto Matraga, o Nhô Augusto – o homem, é abandonado por sua esposa, Siá Dionóra. Ela o troca por Seu Ovídio que a convence a fugir: “Dionóra, vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém toma vocês de mim!”.

Para completar a desgraça de Nhô Augusto, o Major Consilva arregimenta seus homens para emboscar Augusto e matá-lo. Quim Recadeiro traz ambas as notícias para o patrão. Quando fala da esposa que fugiu com Ovídio, ele diz: “Eu podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue só p’ra o dono, e pensei que o senhor podia não gostar”. O que arremeda Nhô Augusto: “Fez na regra, e feito! Chama os meus homens!”.

Mas os homens de Nhô Augusto debandaram para o lado do Major Consilva. Explica Quim: “Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas todos estão falando que o senhor não possui mais nada, perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... – o senhor dê o perdão p’r’a minha boca, que eu só falo o que é perciso – estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação”.

Nhô Augusto não se intimida e antes de ir à Mombuca, para matar Ovídio e Dionóra, decide cair com o Major Consilva e seus capangas. Chegando à casa do Major, este zomba de Augusto e diz que seu tempo de bem-bom acabara. Os capangas do Major pulam em cima de Augusto e com porretes lhe dão uma grande surra e o jogam num barranco: “[...] o Nhô Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue”.

Para humilhar ainda mais a vítima, os capangas “abrasaram o ferro com a marca do gado do Major – que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto”.

Humilhado e quase morto, Augusto é salvo por um casal de pretos que morava na boca do brejo em que ele fora largado. Augusto implora por sua morte: “Me matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor...”. O casal não atende seu pedido e decidem cuidar daquela pobre alma. A preta velha que o hospeda em sua casa o analisa: “Deus que me perdoe, - resmungou a preta, - mas este homem deve ser ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só braveza de matar e sangrar.. E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi!”.

Augusto começa a conviver com o casal e curado de suas feridas segue a vida, tomado por uma “tristeza mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo”. Porém, um dos piores males que o assola é a culpa pelo que fez, pensando se Deus terá piedade dele diante de tantas ruindades que fez. Um padre o visita e o aconselha a rezar e trabalhar, avisando-o de que “cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”.

Ele tentava levar a vida esquecendo-se de seu passado, de sua natureza, de suas maldades. O mais espetacular deste conto é como Guimarães Rosa narra a transformação de Nhô Augusto e como algo silente, oculto e poderoso ainda dormita em sua alma. Nhô Augusto, apesar de tentar ser outra pessoa, ainda possui muito de si mesmo.

Até que num certo dia, o casal de pretos recebe a visita de Joãozinho Bem-Bem e seu bando. O chefe percebe a verdadeira natureza de Augusto e o convida para tomar parte de seu grupo. Mas a oferta é recusada: “Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem”. O chefe parte com seu bando, deixando Augusto com seus pensamentos, suas lembranças e tristezas.

O final do conto, num encontro trágico entre Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem, deve figurar como uns dos melhores finais da literatura brasileira. O livro é excelente, mas considero este conto um dos melhores da nossa literatura. Repito: vale já por este conto.






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sexta-feira, 16 de julho de 2010

Antologia poética de Wallace Stevens



Considero Wallace Stevens (1879-1955) um dos maiores poetas americanos de todos os tempos. E um dos meus poetas favoritos. A razão deste amor para com a obra de Stevens repousa, basicamente, em dois pontos centrais:

1. Sua capacidade incomum de descrever ambientes, paisagens e pessoas, sempre acentuando o que há de denso ou leve em suas composições, a dualidade latente das coisas que trafegam entre o claro e o escuro, entre o assombroso e o trivial, além de marcar com uma voz personalíssima as cores, as sombras, os trejeitos de suas personagens, elaborando um universo muito particular em que o homem e a natureza se tocam constantemente, em que o movimento eterno das coisas pode ser matizado pela diferença que compõe um mundo maior: “É esta a origem das mudanças / Inverno e primavera, em fria cópula / Engendram os pormenores do enlevo”.

2. Stevens possui um olhar metafísico muito interessante sobre as coisas. Na sua poesia, a metafísica não busca paragens inalcançáveis, angelicais. Ao contrário, o poder de sua metafísica reside exatamente em trazer para o plano concreto a visão humana de mundo, dando-lhe um colorido muito específico e que constrói novas realidades plenas de beleza: “Homem curvado sobre o violão, / Como se fosse foice. Dia verde. / Disseram: ‘É azul o teu violão, / Não tocas as coisas tais como são’. / E o homem disse: ‘As coisas tais como são / Se modificam sobre o violão’. / E eles disseram: ‘Toca uma canção / Que esteja além de nós, mas seja nós, / No violão azul, toca a canção / Das coisas justamente como são’.”

A célebre assertiva de que toda tradução é uma traição, parece não ganhar muita validade nesta edição da Companhia das Letras. Paulo Henrique Brito fez uma das melhores traduções de poemas que já conheci – lembrando aquela paixão de Millôr Fernandes ao traduzir Shakespeare. Brito domina muito bem o ritmo da poesia de Stevens e consegue transpor com felicidade os meandros mais sutis do dizer do poeta.

Mesmo quando este dizer é intraduzível, ele compõe elementos novos que em quase nada ficam a dever ao original – mas, como sempre, o ideal seria ler no original, é claro. Um exemplo interessante foi sua tarefa de traduzir Sea Surface Full of Clouds. Numa tradução direta, teríamos: A superfície do mar cheia de nuvens. A ideia de Brito: Marinha, com nuvens.

Os versos iniciais deste poema magistral também não se prestam para uma tradução direta: “In that November off Tehuantepec, / The slopping of the sea grew still one night / And in the morning summer hued the deck / And made one think of rosy chocolate / And gilt umbrellas. Paradisal green / Gave suavity to the perplexed machine / Of ocean, which like limpid water lay”.

A saída de Brito: “Era novembro, em Tehuantepec / E o marulhar do mar calou-se à noite. / Pela manhã desceu sobre o convés / Uma cor morna, como chocolate / Âmbar, como sombrinhas amarelas. /Um verde-éden suavizava a máquina / Do oceano, de uma limpidez perplexa.”

Brito optou traduzir gilt umbrellas (literalmente, sombrinhas ou guarda-chuvas dourados) por sombrinhas amarelas e paradisal green (literalmente verde paradisíaco) por verde-éden. Estas escolhas dão dinâmica à tradução e mantém as idéias do poeta. Mas, volto a dizer, o ideal seria que pudéssemos ler o original. Se isso não é possível, então o trabalho de um bom tradutor deve ser reconhecido.

É uma pena que Wallace Stevens seja tão desconhecido no Brasil. Creio que esta edição da Companhia das Letras com tradução de Paulo Brito seja a única edição brasileira de seus poemas. Há, também, uma edição portuguesa que traz alguns poemas de Stevens. É pouco, é fato, mas já é, assim acredito, um ótimo começo.



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sábado, 10 de julho de 2010

O Caso de Charles Dexter Ward de H. P. Lovecraft



H. P. Lovecraft (1890-1937) foi um escritor americano cuja obra não possui meio-termo. Todo o conjunto de seu trabalho está marcado pela literatura de terror. Apesar de influenciado por Edgar Alan Poe e Lord Dusany, Lovecraft elabora um universo e mitologias tão particulares e originais que o coloca num patamar diferenciado. Entretanto, em meio a um panteão extremamente original com suas deidades ancestrais, suas narrativas estão repletas de belíssimas descrições de cidades americanas antigas, especialmente Providence, sua cidade por excelência.

Lovecraft elaborou o Mito de Cthulhu através de uma obra perdida, o Necronomicon e seu escritor louco, o árabe Abdul Alhazared. O Necronomicon – livro fictício inventado por Lovecraft, assim como seu escritor louco – era um manual de invocação de demônios. Cthulhu é uma deidade ancestral de eons antiqüíssimos e toda a mitologia lovecraftiana gira em torno deste ser cósmico e o apelo ancestral que os deuses antigos mantêm no universo e que chega até nós.

Apesar de escrever apenas contos curtos, Lovecraft escreveu este pequeno e único romance: O Caso de Charles Dexter Ward. Este pequeno romance margeia toda a mitologia lovecraftiana. O livro principia com a narrativa do desaparecimento de Ward de um hospital particular para doentes mentais. O problema é saber, inicialmente, qual o motivo da loucura dessa “pessoa extraordinariamente singular”. É nesta busca pela origem da loucura que a narrativa se embrenha nos confins do extraordinário que habitava há séculos Providence. Esta origem aterradora se reporta à figura não menos enigmática de Joseph Curwen.

Ele era um “indivíduo extremamente assombroso, enigmático, sombriamente horrível. Ele fugira de Salem para Providence – o abrigo universal dos excêntricos, dos homens livres e dos dissidentes – no início do grande pânico da bruxaria, temendo ser acusado por causa de seus hábitos solitários e de suas curiosas experiências químicas e alquimistas”.

Curwen era um estudioso das ciências ocultas e se debruçava demoradamente sobre obras como o Zohar, a Ars Magna de Lully, o Thesaurus Chemicus de Bacon, a Clavis Alchimiae de Fludd, o De Lapide Philosophico de Tritêmio, entre outras, além do próprio Necronomicon. Em 1760, Curwen era “praticamente um proscrito, suspeito de vagos horrores e demoníacas alianças que pareciam ameaçadoras pelo fato de não poderem ser definidas, compreendidas ou mesmo comprovadas”.

Algumas incursões foram feitas na casa de Curwen para descobrir o que aquele estranho senhor sabia sobre o mundo oculto. Mas todos voltavam transtornados de suas peregrinações e foi esse o motivo da busca de Charles Ward: conhecer o desconhecido, aquilo que apenas o velho Curwen havia presenciado e que virara boato na cidade.

Ward descobre manuscritos de Curwen, principalmente uma biografia das suas viagens e descobertas. Ele se prepara para excursionar nos locais indicados por Curwen e retorna a Providence: “percorreu as longas milhas até Providence de ônibus, embebendo-se avidamente da visão das onduladas colinas verdejantes dos fragrantes pomares em flor e das brancas cidadezinhas com campanário do Connecticut primaveril [...] Quando o ônibus atravessou o Pawcatuck e entrou em Rhode Island no ar dourado e irreal de uma tarde de fim de primavera, seu coração batia com mais força e o ingresso em Providence, pelas avenidas Roservoir e Elmwood, foi uma coisa maravilhosa”. Mas é neste retorno que o jovem Ward encontrará o que deveria permanecer desconhecido – neste encontro, onde o absurdo se pronuncia com inegável poder e terror, a mente vacila e a loucura se instaura.



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segunda-feira, 5 de julho de 2010

A morte e a morte de Quincas Berro Dágua de Jorge Amado


No jornal carioca Última Hora, Vinícius de Moraes escreveu em 1959 sobre a novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua: "Saí da leitura dessa extraordinária novela, eu que andava no maior fastio de literatura, com a mesma sensação que tive, e que nunca mais se repetiu, ao ler os grandes romances e novelas dos mestres russos do século XIX, Pushkin, Dostoievski, Tostoi, Gogol especialmente. Uma sensação de bem-estar físico e espiritual como só dão os prazeres do copo e da mesa, quando se está com sede ou fome, e os da cama quando se ama. Ela representa dentro da novelística brasileira, onde já há cimos consideráveis, um cume máximo. Um cume que todos os escritores jovens devem ter em mira numa sadia inveja e num saudável desejo de ultrapassá-lo. E tanto pior se o não fizerem”.

Amado inicia sua pequena novela questionando sobre hora, local e a frase derradeira do morto, o Quincas. E vaticina: “Quincas Berro Dágua mergulhou no mar da Bahia e viajou para sempre, para nunca mais voltar. Assim é o mundo, povoado de céticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado”.

Sempre entendi esta novela como um grito gigantesco de Jorge Amado contra a burocratização do real e, mais importante ainda, um grito de revolta contra a morte e em favor absoluto à vida. Aqui não é a morte quem doma e dirige as ações da vida. É a vida quem toma a morte em seus braços – literalmente falando, já que os amigos de farra irão carregar o velho defunto de lá pra cá – e impõe seu poder estrondoso de a tudo celebrar. Celebra-se a morte por inversão; logo, celebra-se a vida.

O mistério da morte permanece, mas a memória da vida está entranhada nos nossos suores e alegrias. Amado narra os esforços da família para que o velho Quincas voltasse a ser “aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca”. O funeral se inicia e amigos, familiares e curiosos vão dar uma espiadinha no morto, “definitivamente espichado, morto em sua pocilga miserável”.

Quando da notícia de sua morte, há certa reverência por sua pessoa nos bares, mercados, feiras e comércios. Berro Dágua é meio irmão literário de Vadinho. Todos gostam dele, pois ele sabe celebrar a vida, andando de bar em bar, nos cabarés e no meio do povo. “Quando se encontrava, convidado de honra, na popa de um saveiro, ante uma peixada sensacional, as panelas de barro lançando olorosa fumaça, a garrafa de cachaça passando de mão em mão, havia sempre um instante, quando os violões começavam a ser penteados, em que seus instintos marítimos despertavam. Punha-se de pé, o corpo gingando, dava-lhe a cachaça aquele vacilante equilíbrio dos homens de mar, declarava sua condição de ‘velho marinheiro’. Velho marinheiro sem barco e sem mar, desmoralizado em terra, mas não por culpa sua”.

O melhor da narrativa acontece quando os amigos Curió, Negro Pestinha, Cabo Martim e Pé-de-Vento vão ao encontro do morto. No velório, Cabo Martim diz aos presente que, se estão muito cansados de velar o morto, podem ir descansar que eles ficarão por ali. Os amigos já estão cheios de cachaça e no meio da noite, no meio de outra garrafa de cachaça, decidem dar um trago para o morto também, já que ninguém é de ferro, morto ou vivo.

Os amigos decidem sair e levam o morto junto. “Quincas Berro Dágua, divertidíssimo, tentava passar rasteiras no Cabo e no Negro, estendia a língua para os transeuntes, enfiou a cabeça por uma porta para espiar, malicioso, um casal de namorados, pretendia, a cada passo, estirar-se na rua”. E assim a noite segue entre bares decrépitos, putas e muita cachaça.

Vinícius estava certo quando disse que Amado está numa classe de escritores “que fecundam a língua, que realmente libertam as personagens da sua própria teia psicológica e as fazem saltar, vivas e ardentes, para o lado de cá do livro”. O berro poderoso de um morto que ama a vida.

Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”. Frase derradeira de Quincas Berro Dágua segundo Quitéria que estava ao seu lado.


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sábado, 26 de junho de 2010

Satyricon de Petrônio


O Satyricon de Petrônio é uma obra que espanta por sua extrema atualidade. Escrito por volta do ano 60 a.C., narra as aventuras e desventuras de Encólpio, Ascilto e Giton que perambulam em meio a Roma de Nero. Petrônio elabora uma refinada sátira sobre os costumes de sua época. O alegre e o terrível convivem lado a lado. Como a Roma Antiga não possuía a nossa moral – judaica e cristã – a sexualidade se expressava das mais diversas formas: heterossexuais, homossexuais, bissexuais e pansexuais se esbarram o tempo todo em busca de satisfazer suas necessidades mais fundamentais.

A edição que possuo é da Brasiliense com tradução de Paulo Leminski. Leminski traduziu a obra diretamente do Latim, mas se permitiu “modernizar” algumas expressões e orações inteiras para dar mais dinâmica a um texto tão vetusto – apesar de que às vezes Leminski exagera em suas “modernidades”. Mas Leminski mantém as referências essenciais do texto, acrescentando pequenas explanações esclarecedoras. Assim ocorre quando os amigos estão caminhando pela cidade quando se deparam com “um velho careca, vestido com um manto vermelho, jogando bola com uns garotos de cabelos longos como mulher”. Leminski explica: “Inter pueros capillatos ludentem pila. Entre os romanos, os cabelos compridos eram próprios dos jovens escravos destinados aos prazeres sexuais dos seus senhores”.

Um dos relatos mais célebres do romance é o banquete que se passa na casa de Trimalcião, um novo rico romano que quer demonstrar sua opulência num jantar memorável. A descrição da casa de Trimalcião revela um pouco os costumes da Roma Antiga: “[...] continuei a examinar as pinturas da parede. Numa, via-se o próprio Trimalcião, num mercado de escravos, cetro na mão, cabelos ao vento, entrando em Roma, conduzido pela deusa Minerva. Mais além, a pintura representava Trimalcião tendo aulas de cálculo, depois sendo feito tesoureiro, tudo cenas que o pintor tinha o cuidado de esclarecer com legendas. Na extremidade deste pórtico, o deus Mercúrio levantava Trimalcião pelo queixo até um alto tribunal. Ao lado, a deusa Fortuna, cornucopiosamente abundante, e as três Parcas tecendo com fios de ouro”.

No banquete, os convivas bebem o melhor Falerno que há e admiram “as magnificências que nos eram servidas”. O anfitrião diz que em tais banquetes é preciso ter conversas inteligentes e começa a falar sobre Astrologia. Depois é seguido por alguns discursos dos convidados. Em meio a tanta comida e bebida, Trimalcião pede para trazerem um porco e reclama: “Mas o que é isso? Não tiraram as entranhas do animal?”. Chama o cozinheiro que diz que havia se esquecido de destripar o porco. O anfitrião fica indignado e decide dar umas chibatadas no pobre cozinheiro. Os convidados pedem que ele perdoe o cozinheiro. Trimalcião, então, pede ao cozinheiro que destrinche o porco ali mesmo. Eis que começam a cair de dentro do animal “chouriços e lingüiças em profusão”. Era apenas uma brincadeira.

Por fim, depois de diversas desventuras, os amigos acabam nas mãos de Circe, uma sacerdotisa do deus Príapo. Circe deseja Encólpio e este até que tenta responder as investiduras da rainha. Mas quando começam as carícias, ele não consegue ter uma ereção. Circe, decepcionada e indignada, questiona: “Quer dizer então que meus beijos não te despertam nada? Será meu hálito? Ou o cheiro das axilas? Se não for isso, será que não consegues tirar da cabeça teu querido Giton?”. Os amigos elaboram um plano e se livram da rainha insaciável e continuam suas peripécias.

Este pequeno livro – que na verdade é um fragmento de uma obra maior e perdida – deve ser visitado por diversas razões, mas uma das mais interessantes é sua capacidade de nos falar sobre Roma Antiga de modo tão direto e claro. Leminski, no posfácio do livro, escreve esse sentimento superlativo que habita esta obra: “O Satyricon, para nós, é um texto onde, sobretudo, se come. E como se comia naquela Roma Imperial! Comia-se tudo, animais da terra, aves, peixes, salsichas, plantas, frutas, um apetite universal, absoluto, até o limite da fome. Bebia-se vinho em quantidades inverossímeis. É Roma, o imperialismo romano, devorando o mundo mediterrâneo, o trigo da Sicília e do Egito, os figos da África, o mel da Grécia, a pimenta do oriente. A devoração do mundo, a elefantíase do desejo e da gula”.

Bom apetite!


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quinta-feira, 17 de junho de 2010

Gog de Giovanni Papini

Retrato de Papini pintado por Oscar Ghiglia.

 Papini pode ser considerado um dos escritores mais fervorosos e contraditórios do seu tempo na Itália. De um cético declarado que se tornou católico no final da vida, Papini retrata em suas obras essa constante contradição que ele mesmo viveu. Sua estupidez e inteligência, seu sarcasmo e polidez, sua paixão e ódio pela literatura, sua capacidade e incapacidade de entender seu tempo afloram o tempo todo em suas obras.

Possivelmente seu livro mais conhecido seja O Diabo. Mas é em Gog que encontramos um Papini pleno, ciente de suas loucuras e extravagâncias, diletante consigo mesmo e com o mundo. Longe de alcançar a ira e a profundidade de um Nieztsche ou Cioran, por exemplo, este escritor florentino nos brinda com um livro interessante; mas interessante exatamente por causa daquilo que ele parece tanto odiar: a própria literatura. O desprezo com que trata seus interlocutores não é o que nutre o melhor do livro, mas sim as essências dos próprios interlocutores, bizarras ou não.

O tomo está dividido em 70 pequenas crônicas que se pretendem “filosóficas”. Papini elabora encontros imaginários com grandes nomes da cultura mundial: Ford, Lenine, Wells, Saint-German, Gandhi, Shaw, Frazer, Knut Hamsum (um dos poucos por quem ele nutre certo apreço e respeito), Pitágoras, entre outras figuras imaginárias que foram criadas para compor um mosaico que traduz seu desprezo descomunal pela cultura contemporânea.

Logo no início do livro, ele nos avisa que procurou visitar as grandes obras-primas da literatura. Fica decepcionado: “O que não entendia, me parecia inútil; o que entendia não me divertia ou me ofendia. Coisas absurdas, cacetes: às vezes insignificantes ou nauseabundas”. E arremata: “Ficou-me, porém, a dúvida de que a literatura seja incapaz de aperfeiçoamentos decisivos: é muito provável que ninguém, daqui a um século, se dedique a uma indústria tão atrasada e pouco rendosa”.

Entretanto, Papini deixa pistas sobre suas preferências. Na crônica O Canibal Arrependido – que conta o estrago que a civilização cristã causou num canibal ao convencê-lo de que comer carne humana não era saudável – está presente o canibal Quiqueg de Melville. Mas sem aquele poder descritivo maravilhoso do americano.

Na crônica Tudo Pequeno, podemos sentir uma presença quase onírica do Gulliver de Swifts. Mas é com Knut Hamsum que ele se identifica mais. Quando está na Noruega, ele decide visitar o famoso escritor que o recebe da maneira mais inusitada: “Consenti em receber o senhor porque o senhor não é nem um mendigo, nem um literato nem um jornalista nem um desocupado nem um editor nem um colecionador de autógrafos nem um admirador. Todos esses são igualmente insuportáveis”. No final da conversa, o escritor norueguês diz: “E o senhor também, apesar de não me ter pedido nada, já me tomou alguma coisa: meia hora do meu tempo e um pouco de minha força. O senhor também é um ladrão honesto, um ladrão bem educado – mas um ladrão”. Papini concorda com as palavras de Hamsum e diz que irá comprar todos os seus livros, pois “assim lhe ressarcirei delicadamente o tempo que perdeu por minha causa”.

Certos pastiches e absurdidades que dão à obra um tom quase burlesco não conseguem retirar do todo algumas qualidades que a mesma possui. Papini é um escritor erudito e, como disse antes, o que há de positivo em sua escrita é exatamente aquilo que ela quer combater. Um espelho invertido. Uma contradição ambulante.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Prolegômenos de Kant



Immanuel Kant é um daqueles pensadores que todo mundo já ouviu falar, mas pouquíssimos leram e entenderam. Alguns tentaram ler e, por não entenderem nada, desistiram. Outros nem se arriscaram diante da fama de infant terrible deste grande filósofo alemão. Mesmo desconhecido fora dos círculos acadêmicos, Kant é extremamente respeitado. Lembro de Nietzsche que dizia que sua autoridade advinha do fato de ninguém o entender. Com Kant é a mesma coisa. Ninguém lê ou entende, mas todo mundo respeita.

Mas há raros momentos em que os grandes filósofos, encimados nas mais altas montanhas do pensamento, decidem ter compaixão por nós, simples mortais, escrevendo uma obra mais leve, “mais fácil”, que possa instruir essa massa de retardados sobre suas ideias. Hegel com sua Estética, Nietzsche com sua Genealogia da Moral, Heidegger com seus Seminários de Zollikon, Foucault com sua Microfísica. Há vários exemplos.

É muito difícil – e não digo impossível por uma questão de educação – que alguém que não possua uma boa formação filosófica consiga entender a Crítica da Razão Pura de Kant. Esta obra basilar do pensamento filosófico Ocidental compõe, ao lado da Crítica da Razão Prática e da Crítica da Faculdade de Julgar, o alicerce monumental do pensamento kantiano e que constitui uma verdadeira convergência do pensamento filosófico que a precedeu. O problema é que a maioria dos leigos começa o enfrentamento com Kant através da primeira Crítica. Isso é covardia.

O momento de bom humor deste pacato cidadão de Königsberg se dá na sua obra Prolegômenos a toda Metafísica Futura. Aqui Kant explica de modo “sucinto” algumas concepções fundamentais que aparecem na Crítitca da Razão Pura, mas despidas dos longos, tortuosos, profundos e difíceis parágrafos que pululam o tempo todo na Crítica. O Kant dos Prolegômenos estava repleto de compaixão por nossa estupidez.

Kant discute as fontes da Metafísica, portanto, do conhecimento, e daí começa a elaborar sua teoria sobre os juízos: sintéticos e analíticos – bem como sua compreensão sobre espaço e tempo, condições a priori de todo conhecimento. Questiona-se sobre a possibilidade da Metafísica e chega à questão inevitável: Como é possível um conhecimento pela razão pura? Explica-nos que a experiência “não é senão uma contínua adição (síntese) das percepções” e explica os fundamentos do conhecimento matemático e a representação de conceitos na intuição, bem como de juízos intuitivos e discursivos, chegando às proposições apodíticas. Para Kant, a intuição “é uma representação que depende imediatamente da presença do objeto”.

Na segunda parte do livro, Kant discorre sobre a possibilidade de uma ciência pura da natureza. A natureza, em Kant, é “a existência das coisas enquanto esta é determinada segundo leis universais”. Então, ele partirá para discutir a necessidade, a experiência, os juízos empíricos, a percepção. É aqui que Kant nos mostra o seu Quadrológico dos Juízos: Segundo a quantidade, qualidade, relação e modalidade. O Quadro transcendental dos conceitos do entendimento: idem e o Quadro fisiológico puro dos princípios gerais da Ciência da Natureza: Axiomas da intuição, Antecipações da percepção, Analogias das experiências e Postulados do pensamento empírico em geral. Uma abordagem nova diante das Categorias de Aristóteles.

Por fim, discutindo a questão transcendental capital – Como é possível a Metafísica em geral – Kant nos brinda com uma explanação “leve” – será isso possível?! – sobre a dialética da Razão Pura e chegando aos limites mesmos desta mesma Razão.

Para quem já se aventurou pelo pensamento de Kant e saiu derrotado ou para quem tem medo dele, aconselho a começar por esta obra. Será um encontro mais amistoso com este monstro do pensamento humano. Monstro, diga-se de passagem, no sentido de grande, maravilhoso, genial. Ler Nietzsche sem conhecer Kant é ler meio Nietzsche. Por isso, creio eu, seria importante conhecer um pouco melhor ou simplesmente começar a conhecer este pensador tão original e responsável por uma verdadeira revolução na nossa tradição e que depois, ainda como hoje, continua sendo amado ou odiado, mas sempre estudado.

domingo, 6 de junho de 2010

Os 120 de Sodoma de Sade


O que o Satyricon de Petrônio, o Decameron de Boccacio, Sexus de Henry Miller, o Açougueiro de Alina Reyes e os poemas de Hilda Hilst possuem em comum com a obra Os 120 de Sodoma do Marquês de Sade? Simples: o sexo. Mas em cada uma dessas obras o sexo é encarado como pano de fundo para as digressões filosóficas, morais e religiosas destes escritores, enquanto que em Sade ele surge de modo inteiramente diverso. O sexo, em Sade, é o limite, o além de toda metafísica, a perversão da mente e do corpo, a transgressão mais radical possível, a negação e afirmação do outro a um só tempo. Nega-se, em Sade, tudo o que é saudável moralmente falando, tudo o que deveria ser tido como certo, tudo o que poderia fundar uma religião de cunho moral. No campo da ciência sexual – seja medicina ou psicanálise – Sade defende o que os outros chamariam de anomalias. Os jogos dos deveres morais, da apreciação estética moralista, do justo e injusto, da beleza e da feiúra, do medo religioso não tomam lugar neste escritor.

Os 120 de Sodoma narra as peripécias de um grupo de libertinos: o Duque de Blanges; seu irmão, o Bispo; Durcet e Curval que se embrenham num castelo - assessorados por quatro “damas”: Madame Duclos, Madame Champville, Madame Martaine e Madame Desgranges que estão ali para auxiliar nossos pervertidos a realizarem todos os seus desejos - após terem seqüestrado 18 jovens (oito meninos e oito meninas) e levado consigo mais oito homens avantajados e quatro criadas. O objetivo destes senhores é multiplicar e ampliar os objetos de seus prazeres, numa busca frenética pelo limite do corpo e da alma, mas isto sem piedade e com requintes de extrema crueldade. Quando as crianças apavoradas estão no primeiro dia no castelo, são recebidas com a seguinte indagação: “Se Deus existe, então ele intercederia por vocês. Mas como Deus não existe, nada neste mundo poderá lhes ajudar a deixar de passar pelo que nós reservamos para vocês!”.

Os amigos bebem a urina das crianças, jantam suas fezes, sodomizam seus corpos e jamais estão satisfeitos. Os horrores que as crianças são obrigadas a fazer se repetem dia a dia no castelo. São tratadas como cachorros, apanham, são torturadas, obrigadas a fazerem coisas repulsivas e degradantes. Os amigos, senhores de tudo por ali, debatem sobre como ampliar ainda mais seus prazeres, sempre insatisfeitos diante de uma sede incomensurável que os acomete sempre. Nada consegue satisfazer este apetite ancestral e tudo parece pouco diante desta fome de séculos.

Por fim, os amigos escandalizam as torturas: enfiam tubos nos ânus das crianças e colocam um rato faminto no mesmo; infectam-nas com doenças; obrigam-nas a correrem nuas no jardim durante um inverno rigoroso; esbofeteiam suas partes íntimas; colocam montículos de pólvora sobre seus corpos e depois incendeiam; sangram-nas e escarificam suas peles; achatam seus pés com um martelo pesado; crucificam as crianças, etc. A lista é enorme.

Sade relata, sem pudor algum, o lado mais “obscuro” do desejo humano. Deixa um legado incomum de coragem ao falar do que deveria sempre ser calado. Sua obra permanece atual porque o lugar do desejo é sempre atemporal: o outro. Mas aqui, através de uma visão quase irreal, o outro é o mesmo. Realmente, eu recomendo, mas apenas para quem possuir estômago forte.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Banheiro de Jean-Philippe Toussaint


Jean-Philippe Toussaint é um escritor belga que é pouco conhecido aqui no Brasil, apesar de outras obras suas como Fugir, A Televisão e Fazer Amor terem sido, assim como O Banheiro, traduzidas para o português (situação bem diferente do escritor Tom Sharpe que ainda não teve o privilégio de ver sua obra prima, Wilt, ser traduzida para o nosso idioma). Possivelmente este desconhecimento se deva ao fato inegável de que a literatura de Toussaint é bastante incomum. Sua obra gravita sobre as coisas mais banais possíveis, porém possuindo um senso estético e filosófico muito aguçado.

O Banheiro, que parece se situar como uma obra pós roman nouveau, relata a estória de um intelectual diletante que é sustentado por sua linda namorada, Edmondsson. Sua decisão repentina de mudar-se para o banheiro surpreende a todos, mas por trás desta escolha reside uma opção estética: habitar na quietude para, na elasticidade do tempo, poder meditar sobre coisas aparentemente banais. Nesta reclusão voluntária, ele pode apreciar coisas simples com uma intensidade inusitada: “Duas vezes por semana eu escutava a resenha das partidas do campeonato francês de futebol. A emissão durava duas horas. De um estúdio parisiense, o apresentador orquestrava as vozes dos enviados especiais que acompanhavam os encontros nos diversos estádios. Sendo da opinião de que o futebol ganha ao ser imaginado, nunca perdia esses encontros marcados. Embalado por animadas vozes humanas, eu escutava as reportagens com a luz apagada, às vezes de olhos fechados”.

Esta solidão voluntária permite-lhe contemplar as coisas de um ângulo novo: “Chovia. A rua estava molhada, a calçada escura. Carros estacionavam. Outros, já estacionados, estavam cobertos de chuva. As pessoas atravessavam a rua rapidamente, entravam e saíam dos correios cujo edifício moderno me fazia frente. Os vidros começavam a ficar embaçados. Atrás da fina película de vapor, eu observava os transeuntes que depositavam sua correspondência. A chuva lhes dava ares de conspiradores: imobilizavam-se em frente à caixa do correio [...] Aproximei o meu rosto da janela e, os olhos colados contra o vidro, tive de repente a impressão que toda esta gente estava dentro de um aquário. Estariam com medo? O aquário se enchia lentamente”.

O humor sutil permeia sua narrativa, dando-lhe leveza frente a este peso natural que a solidão possui. Este humor é sentido quando dois artistas poloneses, Wiltod Kabrowinski e Kovalskazinski Jean-Marie, são contratados por sua namorada para pintarem seu apartamento. Edmondsson, após o jantar com os dois convidados-pintores, diz que quer fazer amor e mal espera que estes saiam e já começa a tirar a roupa: “Mal havia terminado de fechar a porta atrás dos convidados, Edmondsson tirou a saia e a meia-calça, a qual fez deslizar sobre suas pernas requebrando-se. Pela estreita fresta, Kabrowinski prolongava a despedida; agradecia pelo jantar e, a respeito da cor, recomendava o bege num tom distraído. Quando Edmondsson quis terminar de fechar a porta, Kabrowinski, muito vivo, enfiou o cabo de seu guarda-chuva no vão e, sorrindo para ser perdoado, agradeceu outra vez, de uma maneira diferente, pelo excelente jantar. Após um silêncio, retirou o guarda-chuva e, enquanto Edmondsson, escondida pela parede, se desembaraçava da calcinha, Kabrowinski revelou-se mais explícito. Tentava conseguir um adiantamento sobre o valor prometido, queria um trocado para pegar um táxi e pagar o hotel. Edmondsson mantinha-se firme”.

Num rompante, o personagem decide viajar e passar alguns dias sozinhos num hotel, mas este mundo dos vivos, esta agitação cotidiana de uma grande cidade o entedia. O seu motor, sua fonte de energia e prazer é a mente e assim ele retorna ao aconchego de seu banheiro e segue sua vida numa busca pela quietude máxima. Mas, numa reviravolta, o livro (que possui na edição brasileira da Nova Fronteira apenas 80 páginas) termina com nosso intelectual decidindo sair do banheiro.

O que me agrada neste pequeno romance é a falta de psicologismo, seu humor mordaz e as observações interessantes sobre as mais variadas coisas: sua perspicácia em observar cores, formas, texturas é, inegavelmente, um olhar atento sobre o mundo, só que numa abordagem que lembra aquele olhar distante e quase silencioso que Beckett lança em seu Molloy. Realmente, eu recomendo.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Inferno de August Strindberg



August Strindberg é mais conhecido no Brasil por suas peças de teatro Senhorita Júlia e A Dança Macabra. Entretanto, sua genialidade literária não se resume apenas ao teatro – o que já seria muito – mas se faz presente também no romance. A edição que possuo do romance Inferno é de 1989, editado pela Nova Fronteira e com uma tradução primorosa de Ivo Barroso. Na capa há uma citação de Kafka: “Eu me sinto melhor porque li Strindberg. Eu não o leio por ler, mas para apertá-lo contra o peito... O enorme Strindberg. Esta raiva, estas páginas ganhas à força do pulso”.

Neste romance há raiva, medo, loucura e solidão. O livro é dividido em 17 capítulos, cada um com um título. No primeiro capítulo – A mão do invisível – o autor relata a separação com sua esposa: “Com sentimento de selvagem júbilo, retornava da Gare Du Nord, onde me despedira de minha cara-metade, que fora cuidar de nossa filha, enferma na terra distante. Consumara o sacrifício de meu coração! Suas últimas palavras: ‘Até quando?’, e minha resposta: ‘Até breve’, ressoam-me ainda como inverdades que relutava em admitir, pois um pressentimento me dizia que estávamos nos despedindo para sempre”. Este tom lacônico e desesperado irá perpassar o romance de cima a baixo.

O autor se muda para um hotel e lá começa o seu martírio mental. Ele se vê abandonado por todos e perseguidos por inimigos e amigos. Uma solidão incomensurável, em que paira sempre um espírito usurpador frente ao nosso anti-herói, devasta sua mente e ele começa um processo de alucinação: vê inimigos invisíveis e forças trevosas que espreitam incessantemente. Sua solidão é brutal: “Morto para o mundo ao renunciar às fúteis alegrias de Paris, permaneço em meu bairro onde visito todas as manhãs os mortos do cemitério de Montparnasse... a rive droite representa para mim uma coisa proibida, constituindo o mundo propriamente dito, o mundo dos vivos e da vaidade”.

Para fugir de sua loucura, o autor se inicia nas ciências ocultas, mas especificamente a alquimia e a magia negra. Lê Swedenborg e este se torna seu mestre espiritual, trazendo-lhe as palmas “da vitória ou do martírio” - e a obra Séraphita de Balzac – que narra a estória de um ser estranho e andrógino, Séraphitus-séraphita – torna-se para ele um evangelho. Elabora seu sanctum místico e começa suas práticas de alquimia em busca de uma vitória real contra seus inimigos invisíveis. Vê o demônio inscrito nas costas de um caranguejo cozido e o eletricista que trabalha na rua parece espreitá-lo, querendo lhe fazer um mal terrível ao menor descuido seu. Seguindo seu martírio e seu deus pessoal, fica enfermo e é acolhido por irmãs que cuidam de sua doença. O clima é sempre pesado e denso: “No dia de finados, por volta das três horas da tarde, o sol brilha, o ar está calmo. A procissão dos moradores, precedida pelo vigário, por estandartes e a banda de música, vai em direção do cemitério homenagear os mortos. Os sinos da igreja começam a bater. Então, sem preâmbulos, sem qualquer nuvem precursora num céu azul-pálido, a tempestade desaba”.

Descobrindo que o único inimigo possível somos nós mesmos, busca o arrependimento, procura por uma salvação que jamais virá, estuda Peladan e descobre que Annie Besant – a grande teósofa discípula de Blavatsky – tornara-se católica. Solitário, sempre em busca de uma lucidez tardia, percebe que a roda sempre gira mais uma vez e que a vida precisa continuar: “Que virá em seguida? – Uma nova brincadeira dos Deuses, que riem a bandeiras despregadas quando vertemos lágrimas ardentes?”.

Um texto magnífico, profundo, instigado e instigante que nos conduz a um universo de angústia e esperança ambíguo, mas que não deixa de transpirar um segundo sequer sua grande humanidade. Realmente, recomendo!