domingo, 8 de agosto de 2010

Primeiro Amor de Samuel Beckett


O escritor irlandês Samuel Beckett é mais conhecido no Brasil por sua peça Esperando Godot e por seu romance Molloy. Apesar de sua língua nativa ser o inglês e de diversas obras suas serem compostas neste idioma, Beckett possuía uma grande paixão e domínio pelo idioma francês. Essa paixão e esse domínio o levaram a compor um romance curto e magnífico: Premier Amour.

Escrito em 1945, este pequeno romance segue uma tendência dominante nos escritores do Nouveau Roman, ou seja, dissociar as pessoas dos objetos que as rodeiam, mas sempre tentando buscar uma solução para este distanciamento ou, ao menos, certa conciliação possível.

A narrativa principia com a incursão do personagem principal caminhando por um cemitério, procurando o túmulo de seu pai para descobrir qual a idade em que ele havia falecido. Suas impressões sobre o local são peculiares: “O odor dos cadáveres, que sinto claramente sob o cheiro da grama e do humo, não me é desagradável. Um pouco açucarado demais, talvez, um pouco atordoante, mas muito preferível ao dos vivos, das axilas, dos pés, dos cus, dos prepúcios cheios de ceroto e dos óvulos gorados. E quando os restos de meu pai colaboram nesse odor, por modestamente que seja, pouco falta para que venham lágrimas aos olhos”.

Passeando entre as lápides e recolhendo as inscrições gravadas nas pedras, ele pensa no seu epitáfio que lhe agrada muito mais do que seus outros escritos. O epitáfio diz: “Ci-gît qui y échappa tant / Qu´il n´en échappe que maintenant”. Ou seja: Aqui jaz quem tanto dela escapou / Que dela só escapa agora.

Mas surge na vida deste solitário que vaga pelos cemitérios uma mulher que mudará os rumos de sua solidão. “Conheci-a num banco, à margem do canal, de um dos canais, pois nossa cidade tem dois, mas não consigo nunca distinguí-los [...] Tinha uma voz desafinada mas agradável. Percebi a alma que se cansa logo e não conclui nunca nada, que é de todas talvez a menos chata”.

O nosso anti-herói, entretanto, parece não desejar uma relação amorosa. De fato, ele a evita: “A coisa que me interessava a mim, rei sem súditos, da qual a posição de minha carcaça era apenas o mais longínquo e fútil dos reflexos, era a supinação cerebral, o torpor da ideia do eu e da ideia desse pequeno resíduo de ninharias envenenantes a que se dá o nome de não-eu, e mesmo de mundo, por preguiça”.

Ele, apesar de vinte e cinco anos (como ele mesmo diz), ainda sente tesão e sua pseudo companheira percebe sua ereção. Sua visão do amor, entretanto, é bem distante de alguma abordagem romântica: “O que chamam de amor é o exílio, com um cartão-postal da terra de vez em quando, eis meu sentimento naquela noite”. Seu distanciamento e indiferença são acentuados: “Quando ela terminou e meu eu meu, o domesticado, se reconstituiu com a ajuda de uma breve inconsciência, eu me encontrei só”.

Sua solidão e exílio voluntários são perturbados pela insistência com que sua pseudo companheira, Lulu, insiste em vê-lo. Ele quer apenas distância deste primeiro amor, nada de compromissos ou vínculos duradouros: “Disse-lhe que viesse com menos frequência, muito menos frequência, que não viesse de todo se pudesse, e se não, o menos possível”.

Beckett elabora o distanciamento das pessoas e destas com as coisas e seus lugares numa tragédia existencial que perpassa a solidão, o sarcasmo e a indiferença de seus personagens. Este perpétuo conflito com as coisas e as pessoas é o ponto central da compreensão beckettiana para a existência.

Além do mais, é impressionante o domínio que ele possui do francês. Escrever com tal desenvoltura num idioma estrangeiro é uma tarefa gigantesca – aquela mesma tarefa que levou o escritor polonês Joseph Conrad a escrever apenas em inglês. E, mais ainda, com tanto apuro técnico e estilístico.


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