segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Banheiro de Jean-Philippe Toussaint


Jean-Philippe Toussaint é um escritor belga que é pouco conhecido aqui no Brasil, apesar de outras obras suas como Fugir, A Televisão e Fazer Amor terem sido, assim como O Banheiro, traduzidas para o português (situação bem diferente do escritor Tom Sharpe que ainda não teve o privilégio de ver sua obra prima, Wilt, ser traduzida para o nosso idioma). Possivelmente este desconhecimento se deva ao fato inegável de que a literatura de Toussaint é bastante incomum. Sua obra gravita sobre as coisas mais banais possíveis, porém possuindo um senso estético e filosófico muito aguçado.

O Banheiro, que parece se situar como uma obra pós roman nouveau, relata a estória de um intelectual diletante que é sustentado por sua linda namorada, Edmondsson. Sua decisão repentina de mudar-se para o banheiro surpreende a todos, mas por trás desta escolha reside uma opção estética: habitar na quietude para, na elasticidade do tempo, poder meditar sobre coisas aparentemente banais. Nesta reclusão voluntária, ele pode apreciar coisas simples com uma intensidade inusitada: “Duas vezes por semana eu escutava a resenha das partidas do campeonato francês de futebol. A emissão durava duas horas. De um estúdio parisiense, o apresentador orquestrava as vozes dos enviados especiais que acompanhavam os encontros nos diversos estádios. Sendo da opinião de que o futebol ganha ao ser imaginado, nunca perdia esses encontros marcados. Embalado por animadas vozes humanas, eu escutava as reportagens com a luz apagada, às vezes de olhos fechados”.

Esta solidão voluntária permite-lhe contemplar as coisas de um ângulo novo: “Chovia. A rua estava molhada, a calçada escura. Carros estacionavam. Outros, já estacionados, estavam cobertos de chuva. As pessoas atravessavam a rua rapidamente, entravam e saíam dos correios cujo edifício moderno me fazia frente. Os vidros começavam a ficar embaçados. Atrás da fina película de vapor, eu observava os transeuntes que depositavam sua correspondência. A chuva lhes dava ares de conspiradores: imobilizavam-se em frente à caixa do correio [...] Aproximei o meu rosto da janela e, os olhos colados contra o vidro, tive de repente a impressão que toda esta gente estava dentro de um aquário. Estariam com medo? O aquário se enchia lentamente”.

O humor sutil permeia sua narrativa, dando-lhe leveza frente a este peso natural que a solidão possui. Este humor é sentido quando dois artistas poloneses, Wiltod Kabrowinski e Kovalskazinski Jean-Marie, são contratados por sua namorada para pintarem seu apartamento. Edmondsson, após o jantar com os dois convidados-pintores, diz que quer fazer amor e mal espera que estes saiam e já começa a tirar a roupa: “Mal havia terminado de fechar a porta atrás dos convidados, Edmondsson tirou a saia e a meia-calça, a qual fez deslizar sobre suas pernas requebrando-se. Pela estreita fresta, Kabrowinski prolongava a despedida; agradecia pelo jantar e, a respeito da cor, recomendava o bege num tom distraído. Quando Edmondsson quis terminar de fechar a porta, Kabrowinski, muito vivo, enfiou o cabo de seu guarda-chuva no vão e, sorrindo para ser perdoado, agradeceu outra vez, de uma maneira diferente, pelo excelente jantar. Após um silêncio, retirou o guarda-chuva e, enquanto Edmondsson, escondida pela parede, se desembaraçava da calcinha, Kabrowinski revelou-se mais explícito. Tentava conseguir um adiantamento sobre o valor prometido, queria um trocado para pegar um táxi e pagar o hotel. Edmondsson mantinha-se firme”.

Num rompante, o personagem decide viajar e passar alguns dias sozinhos num hotel, mas este mundo dos vivos, esta agitação cotidiana de uma grande cidade o entedia. O seu motor, sua fonte de energia e prazer é a mente e assim ele retorna ao aconchego de seu banheiro e segue sua vida numa busca pela quietude máxima. Mas, numa reviravolta, o livro (que possui na edição brasileira da Nova Fronteira apenas 80 páginas) termina com nosso intelectual decidindo sair do banheiro.

O que me agrada neste pequeno romance é a falta de psicologismo, seu humor mordaz e as observações interessantes sobre as mais variadas coisas: sua perspicácia em observar cores, formas, texturas é, inegavelmente, um olhar atento sobre o mundo, só que numa abordagem que lembra aquele olhar distante e quase silencioso que Beckett lança em seu Molloy. Realmente, eu recomendo.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Inferno de August Strindberg



August Strindberg é mais conhecido no Brasil por suas peças de teatro Senhorita Júlia e A Dança Macabra. Entretanto, sua genialidade literária não se resume apenas ao teatro – o que já seria muito – mas se faz presente também no romance. A edição que possuo do romance Inferno é de 1989, editado pela Nova Fronteira e com uma tradução primorosa de Ivo Barroso. Na capa há uma citação de Kafka: “Eu me sinto melhor porque li Strindberg. Eu não o leio por ler, mas para apertá-lo contra o peito... O enorme Strindberg. Esta raiva, estas páginas ganhas à força do pulso”.

Neste romance há raiva, medo, loucura e solidão. O livro é dividido em 17 capítulos, cada um com um título. No primeiro capítulo – A mão do invisível – o autor relata a separação com sua esposa: “Com sentimento de selvagem júbilo, retornava da Gare Du Nord, onde me despedira de minha cara-metade, que fora cuidar de nossa filha, enferma na terra distante. Consumara o sacrifício de meu coração! Suas últimas palavras: ‘Até quando?’, e minha resposta: ‘Até breve’, ressoam-me ainda como inverdades que relutava em admitir, pois um pressentimento me dizia que estávamos nos despedindo para sempre”. Este tom lacônico e desesperado irá perpassar o romance de cima a baixo.

O autor se muda para um hotel e lá começa o seu martírio mental. Ele se vê abandonado por todos e perseguidos por inimigos e amigos. Uma solidão incomensurável, em que paira sempre um espírito usurpador frente ao nosso anti-herói, devasta sua mente e ele começa um processo de alucinação: vê inimigos invisíveis e forças trevosas que espreitam incessantemente. Sua solidão é brutal: “Morto para o mundo ao renunciar às fúteis alegrias de Paris, permaneço em meu bairro onde visito todas as manhãs os mortos do cemitério de Montparnasse... a rive droite representa para mim uma coisa proibida, constituindo o mundo propriamente dito, o mundo dos vivos e da vaidade”.

Para fugir de sua loucura, o autor se inicia nas ciências ocultas, mas especificamente a alquimia e a magia negra. Lê Swedenborg e este se torna seu mestre espiritual, trazendo-lhe as palmas “da vitória ou do martírio” - e a obra Séraphita de Balzac – que narra a estória de um ser estranho e andrógino, Séraphitus-séraphita – torna-se para ele um evangelho. Elabora seu sanctum místico e começa suas práticas de alquimia em busca de uma vitória real contra seus inimigos invisíveis. Vê o demônio inscrito nas costas de um caranguejo cozido e o eletricista que trabalha na rua parece espreitá-lo, querendo lhe fazer um mal terrível ao menor descuido seu. Seguindo seu martírio e seu deus pessoal, fica enfermo e é acolhido por irmãs que cuidam de sua doença. O clima é sempre pesado e denso: “No dia de finados, por volta das três horas da tarde, o sol brilha, o ar está calmo. A procissão dos moradores, precedida pelo vigário, por estandartes e a banda de música, vai em direção do cemitério homenagear os mortos. Os sinos da igreja começam a bater. Então, sem preâmbulos, sem qualquer nuvem precursora num céu azul-pálido, a tempestade desaba”.

Descobrindo que o único inimigo possível somos nós mesmos, busca o arrependimento, procura por uma salvação que jamais virá, estuda Peladan e descobre que Annie Besant – a grande teósofa discípula de Blavatsky – tornara-se católica. Solitário, sempre em busca de uma lucidez tardia, percebe que a roda sempre gira mais uma vez e que a vida precisa continuar: “Que virá em seguida? – Uma nova brincadeira dos Deuses, que riem a bandeiras despregadas quando vertemos lágrimas ardentes?”.

Um texto magnífico, profundo, instigado e instigante que nos conduz a um universo de angústia e esperança ambíguo, mas que não deixa de transpirar um segundo sequer sua grande humanidade. Realmente, recomendo!