sábado, 31 de julho de 2010

A Genealogia da Moral de Nietzsche



Escreve Nietzsche na sua Genealogia da Moral: “Os doentes têm grande engenho para descobrir as causas ou pretextos da sua dor; geram-se nas suas suspeitas; o seu cérebro devaneia sobre as injúrias de que se julgam ser vítimas; examinam as entranhas do seu passado e do seu presente, para achar sombras e mistérios que lhes permitam embriagar-se de dolorosas desconfianças e da sua própria malícia abrem as suas antigas feridas, perdem sangue pelas cicatrizes, fazem sofrer aos amigos, à mulher, aos filhos, a todos os seus próximos. 'Eu sofro, alguém tem a culpa’. Assim discorrem todas as ovelhas. E então o pastor responde-lhes: ‘É verdade, minha ovelha; alguém tem a culpa; mas é tu mesma; os ‘teus pecados são a causa do teu mal’... Isto é muito atrevido, muito falso. Mas obtém-se um fim: ‘mudar a direção do ressentimento’”.

Esta obra de Nietzsche antecipa o Mal-Estar na Civilização de Freud e as ideias morais de Aleister Crowley. Nietzsche queria descobrir as raízes da moral judaico-cristã e chegou a entender que o “cristianismo é platonismo para o povo”, enquanto o próprio Platão lhe parecia um traidor da força originária da Grécia Antiga, indo para o Egito Antigo e aprendendo com os judeus de lá e não com o povo egípcio e seus sábios.

A síntese desta obra se encontra na proposição 195 de Para Além do Bem e do Mal: “Os judeus – povo ‘nascido para a escravidão’, como dizia Tácito e todo o mundo antigo, ‘o povo eleito entre os povos’, como eles próprios dizem e crêem – os judeus realizaram aquele milagre da inversão dos valores graças ao qual a vida na terra recebeu, durante uns milênios, um novo e perigoso atrativo: seus profetas fundiram ‘rico’, ‘ímpio’, ‘mau’, ‘violento’, ‘sensual’ numa só palavra e deram pela primeira vez um sentido injurioso à palavra ‘mundo’. Reside nessa inversão de valores – em que convém empregar-se a palavra ‘pobre’ como sinônimo de ‘santo’ e de ‘amigo’ – a importância do povo judaico. A rebelião dos escravos na moral começa com os judeus.

Como filólogo, Nioetzsche se interessa pela hermenêutica das palavras bom e mau. Chega à conclusão de que “bom” (agathos) referia-se ao “matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se tinham por homens de uma classe superior”. Esses superiores eram os ricos, os donos, os chefes, os poderosos. Depois, explica que “a palavra kakos, como a deilos (que designa o plebeu por oposição ao agathos) denota covardia e indica a direção em que se deveria procurar a etimologia de agathos, palavra que pode-se interpretar de muitas maneiras). O latim malus (que eu relaciono com melas, ‘negro’) pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos (hic niger est), o autóctone pré-ariano do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos loiros arianos”.

Claro que os detratores de Nietzsche lançaram mão de argumentos ad hominem para distorcer as palavras do filósofo. Primeiro, associaram Nietzsche a um louco solitário e que não sabia do que estava falando. Isto soa tão estranho: logo Nietzsche, um dos homens mais lúcidos que já andaram sobre a Terra. E depois associaram sua filosofia com o Nazismo. Pior ainda: um deformado intelectual como Hitler conhecia Nietzsche muito mal e provavelmente ficou completamente confuso lendo Zaratustra. Para tanto, basta ler Crepúsculo dos Ídolos quando Nietzsche fala do que os alemães estão na iminência de perder.

Nietzsche não é um escritor fácil, apesar de ser o “filósofo de todo jovem”. Sua Genealogia da Moral é um desses raros momentos em que seu bom humor e sua verve mais sarcástica estão à flor da pele, tornando-o mais palatável para gostos melindrados. Livro essencial para que possamos pensar um pouco melhor a moral de nossa civilização e entender um pouco mais os labirintos sutis e profundos desta moral atávica em que estamos mergulhados até o pescoço.



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