domingo, 25 de julho de 2010

Sagarana de Guimarães Rosa


Numa carta para João Condé, Guimarães Rosa fala dos contos do seu livro Sagarana. O escritor mineiro fala de sua predileção pelo conto Corpo Fechado, mas não nega sua admiração pelo conto A hora e vez de Augusto Matraga: “História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir”.

Não há como discordar do autor. De fato, Sagarana – como acontece com quase todo livro de contos – possui momentos altos e baixos. Mas o cume desta montanha literária reside mesmo no conto A hora e vez de Augusto Matraga. A forma conquistada por Guimarães Rosa é original e desanda criatividade por todos os lados, lembrando um pouco as concepções de Coelho Netto (penso aqui no conto Mau Sangue) e o alcance de uma literatura profundamente brasileira e inovadora.

O livro valeria apenas por este conto. Os outros são bons, mas Matraga é uma preciosidade de acerto na forma e no enredo. Augusto Matraga, o Nhô Augusto – o homem, é abandonado por sua esposa, Siá Dionóra. Ela o troca por Seu Ovídio que a convence a fugir: “Dionóra, vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém toma vocês de mim!”.

Para completar a desgraça de Nhô Augusto, o Major Consilva arregimenta seus homens para emboscar Augusto e matá-lo. Quim Recadeiro traz ambas as notícias para o patrão. Quando fala da esposa que fugiu com Ovídio, ele diz: “Eu podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue só p’ra o dono, e pensei que o senhor podia não gostar”. O que arremeda Nhô Augusto: “Fez na regra, e feito! Chama os meus homens!”.

Mas os homens de Nhô Augusto debandaram para o lado do Major Consilva. Explica Quim: “Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas todos estão falando que o senhor não possui mais nada, perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... – o senhor dê o perdão p’r’a minha boca, que eu só falo o que é perciso – estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação”.

Nhô Augusto não se intimida e antes de ir à Mombuca, para matar Ovídio e Dionóra, decide cair com o Major Consilva e seus capangas. Chegando à casa do Major, este zomba de Augusto e diz que seu tempo de bem-bom acabara. Os capangas do Major pulam em cima de Augusto e com porretes lhe dão uma grande surra e o jogam num barranco: “[...] o Nhô Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue”.

Para humilhar ainda mais a vítima, os capangas “abrasaram o ferro com a marca do gado do Major – que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto”.

Humilhado e quase morto, Augusto é salvo por um casal de pretos que morava na boca do brejo em que ele fora largado. Augusto implora por sua morte: “Me matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor...”. O casal não atende seu pedido e decidem cuidar daquela pobre alma. A preta velha que o hospeda em sua casa o analisa: “Deus que me perdoe, - resmungou a preta, - mas este homem deve ser ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só braveza de matar e sangrar.. E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi!”.

Augusto começa a conviver com o casal e curado de suas feridas segue a vida, tomado por uma “tristeza mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo”. Porém, um dos piores males que o assola é a culpa pelo que fez, pensando se Deus terá piedade dele diante de tantas ruindades que fez. Um padre o visita e o aconselha a rezar e trabalhar, avisando-o de que “cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”.

Ele tentava levar a vida esquecendo-se de seu passado, de sua natureza, de suas maldades. O mais espetacular deste conto é como Guimarães Rosa narra a transformação de Nhô Augusto e como algo silente, oculto e poderoso ainda dormita em sua alma. Nhô Augusto, apesar de tentar ser outra pessoa, ainda possui muito de si mesmo.

Até que num certo dia, o casal de pretos recebe a visita de Joãozinho Bem-Bem e seu bando. O chefe percebe a verdadeira natureza de Augusto e o convida para tomar parte de seu grupo. Mas a oferta é recusada: “Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem”. O chefe parte com seu bando, deixando Augusto com seus pensamentos, suas lembranças e tristezas.

O final do conto, num encontro trágico entre Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem, deve figurar como uns dos melhores finais da literatura brasileira. O livro é excelente, mas considero este conto um dos melhores da nossa literatura. Repito: vale já por este conto.






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