segunda-feira, 5 de julho de 2010

A morte e a morte de Quincas Berro Dágua de Jorge Amado


No jornal carioca Última Hora, Vinícius de Moraes escreveu em 1959 sobre a novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua: "Saí da leitura dessa extraordinária novela, eu que andava no maior fastio de literatura, com a mesma sensação que tive, e que nunca mais se repetiu, ao ler os grandes romances e novelas dos mestres russos do século XIX, Pushkin, Dostoievski, Tostoi, Gogol especialmente. Uma sensação de bem-estar físico e espiritual como só dão os prazeres do copo e da mesa, quando se está com sede ou fome, e os da cama quando se ama. Ela representa dentro da novelística brasileira, onde já há cimos consideráveis, um cume máximo. Um cume que todos os escritores jovens devem ter em mira numa sadia inveja e num saudável desejo de ultrapassá-lo. E tanto pior se o não fizerem”.

Amado inicia sua pequena novela questionando sobre hora, local e a frase derradeira do morto, o Quincas. E vaticina: “Quincas Berro Dágua mergulhou no mar da Bahia e viajou para sempre, para nunca mais voltar. Assim é o mundo, povoado de céticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado”.

Sempre entendi esta novela como um grito gigantesco de Jorge Amado contra a burocratização do real e, mais importante ainda, um grito de revolta contra a morte e em favor absoluto à vida. Aqui não é a morte quem doma e dirige as ações da vida. É a vida quem toma a morte em seus braços – literalmente falando, já que os amigos de farra irão carregar o velho defunto de lá pra cá – e impõe seu poder estrondoso de a tudo celebrar. Celebra-se a morte por inversão; logo, celebra-se a vida.

O mistério da morte permanece, mas a memória da vida está entranhada nos nossos suores e alegrias. Amado narra os esforços da família para que o velho Quincas voltasse a ser “aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca”. O funeral se inicia e amigos, familiares e curiosos vão dar uma espiadinha no morto, “definitivamente espichado, morto em sua pocilga miserável”.

Quando da notícia de sua morte, há certa reverência por sua pessoa nos bares, mercados, feiras e comércios. Berro Dágua é meio irmão literário de Vadinho. Todos gostam dele, pois ele sabe celebrar a vida, andando de bar em bar, nos cabarés e no meio do povo. “Quando se encontrava, convidado de honra, na popa de um saveiro, ante uma peixada sensacional, as panelas de barro lançando olorosa fumaça, a garrafa de cachaça passando de mão em mão, havia sempre um instante, quando os violões começavam a ser penteados, em que seus instintos marítimos despertavam. Punha-se de pé, o corpo gingando, dava-lhe a cachaça aquele vacilante equilíbrio dos homens de mar, declarava sua condição de ‘velho marinheiro’. Velho marinheiro sem barco e sem mar, desmoralizado em terra, mas não por culpa sua”.

O melhor da narrativa acontece quando os amigos Curió, Negro Pestinha, Cabo Martim e Pé-de-Vento vão ao encontro do morto. No velório, Cabo Martim diz aos presente que, se estão muito cansados de velar o morto, podem ir descansar que eles ficarão por ali. Os amigos já estão cheios de cachaça e no meio da noite, no meio de outra garrafa de cachaça, decidem dar um trago para o morto também, já que ninguém é de ferro, morto ou vivo.

Os amigos decidem sair e levam o morto junto. “Quincas Berro Dágua, divertidíssimo, tentava passar rasteiras no Cabo e no Negro, estendia a língua para os transeuntes, enfiou a cabeça por uma porta para espiar, malicioso, um casal de namorados, pretendia, a cada passo, estirar-se na rua”. E assim a noite segue entre bares decrépitos, putas e muita cachaça.

Vinícius estava certo quando disse que Amado está numa classe de escritores “que fecundam a língua, que realmente libertam as personagens da sua própria teia psicológica e as fazem saltar, vivas e ardentes, para o lado de cá do livro”. O berro poderoso de um morto que ama a vida.

Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”. Frase derradeira de Quincas Berro Dágua segundo Quitéria que estava ao seu lado.


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