sábado, 26 de junho de 2010

Satyricon de Petrônio


O Satyricon de Petrônio é uma obra que espanta por sua extrema atualidade. Escrito por volta do ano 60 a.C., narra as aventuras e desventuras de Encólpio, Ascilto e Giton que perambulam em meio a Roma de Nero. Petrônio elabora uma refinada sátira sobre os costumes de sua época. O alegre e o terrível convivem lado a lado. Como a Roma Antiga não possuía a nossa moral – judaica e cristã – a sexualidade se expressava das mais diversas formas: heterossexuais, homossexuais, bissexuais e pansexuais se esbarram o tempo todo em busca de satisfazer suas necessidades mais fundamentais.

A edição que possuo é da Brasiliense com tradução de Paulo Leminski. Leminski traduziu a obra diretamente do Latim, mas se permitiu “modernizar” algumas expressões e orações inteiras para dar mais dinâmica a um texto tão vetusto – apesar de que às vezes Leminski exagera em suas “modernidades”. Mas Leminski mantém as referências essenciais do texto, acrescentando pequenas explanações esclarecedoras. Assim ocorre quando os amigos estão caminhando pela cidade quando se deparam com “um velho careca, vestido com um manto vermelho, jogando bola com uns garotos de cabelos longos como mulher”. Leminski explica: “Inter pueros capillatos ludentem pila. Entre os romanos, os cabelos compridos eram próprios dos jovens escravos destinados aos prazeres sexuais dos seus senhores”.

Um dos relatos mais célebres do romance é o banquete que se passa na casa de Trimalcião, um novo rico romano que quer demonstrar sua opulência num jantar memorável. A descrição da casa de Trimalcião revela um pouco os costumes da Roma Antiga: “[...] continuei a examinar as pinturas da parede. Numa, via-se o próprio Trimalcião, num mercado de escravos, cetro na mão, cabelos ao vento, entrando em Roma, conduzido pela deusa Minerva. Mais além, a pintura representava Trimalcião tendo aulas de cálculo, depois sendo feito tesoureiro, tudo cenas que o pintor tinha o cuidado de esclarecer com legendas. Na extremidade deste pórtico, o deus Mercúrio levantava Trimalcião pelo queixo até um alto tribunal. Ao lado, a deusa Fortuna, cornucopiosamente abundante, e as três Parcas tecendo com fios de ouro”.

No banquete, os convivas bebem o melhor Falerno que há e admiram “as magnificências que nos eram servidas”. O anfitrião diz que em tais banquetes é preciso ter conversas inteligentes e começa a falar sobre Astrologia. Depois é seguido por alguns discursos dos convidados. Em meio a tanta comida e bebida, Trimalcião pede para trazerem um porco e reclama: “Mas o que é isso? Não tiraram as entranhas do animal?”. Chama o cozinheiro que diz que havia se esquecido de destripar o porco. O anfitrião fica indignado e decide dar umas chibatadas no pobre cozinheiro. Os convidados pedem que ele perdoe o cozinheiro. Trimalcião, então, pede ao cozinheiro que destrinche o porco ali mesmo. Eis que começam a cair de dentro do animal “chouriços e lingüiças em profusão”. Era apenas uma brincadeira.

Por fim, depois de diversas desventuras, os amigos acabam nas mãos de Circe, uma sacerdotisa do deus Príapo. Circe deseja Encólpio e este até que tenta responder as investiduras da rainha. Mas quando começam as carícias, ele não consegue ter uma ereção. Circe, decepcionada e indignada, questiona: “Quer dizer então que meus beijos não te despertam nada? Será meu hálito? Ou o cheiro das axilas? Se não for isso, será que não consegues tirar da cabeça teu querido Giton?”. Os amigos elaboram um plano e se livram da rainha insaciável e continuam suas peripécias.

Este pequeno livro – que na verdade é um fragmento de uma obra maior e perdida – deve ser visitado por diversas razões, mas uma das mais interessantes é sua capacidade de nos falar sobre Roma Antiga de modo tão direto e claro. Leminski, no posfácio do livro, escreve esse sentimento superlativo que habita esta obra: “O Satyricon, para nós, é um texto onde, sobretudo, se come. E como se comia naquela Roma Imperial! Comia-se tudo, animais da terra, aves, peixes, salsichas, plantas, frutas, um apetite universal, absoluto, até o limite da fome. Bebia-se vinho em quantidades inverossímeis. É Roma, o imperialismo romano, devorando o mundo mediterrâneo, o trigo da Sicília e do Egito, os figos da África, o mel da Grécia, a pimenta do oriente. A devoração do mundo, a elefantíase do desejo e da gula”.

Bom apetite!


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quinta-feira, 17 de junho de 2010

Gog de Giovanni Papini

Retrato de Papini pintado por Oscar Ghiglia.

 Papini pode ser considerado um dos escritores mais fervorosos e contraditórios do seu tempo na Itália. De um cético declarado que se tornou católico no final da vida, Papini retrata em suas obras essa constante contradição que ele mesmo viveu. Sua estupidez e inteligência, seu sarcasmo e polidez, sua paixão e ódio pela literatura, sua capacidade e incapacidade de entender seu tempo afloram o tempo todo em suas obras.

Possivelmente seu livro mais conhecido seja O Diabo. Mas é em Gog que encontramos um Papini pleno, ciente de suas loucuras e extravagâncias, diletante consigo mesmo e com o mundo. Longe de alcançar a ira e a profundidade de um Nieztsche ou Cioran, por exemplo, este escritor florentino nos brinda com um livro interessante; mas interessante exatamente por causa daquilo que ele parece tanto odiar: a própria literatura. O desprezo com que trata seus interlocutores não é o que nutre o melhor do livro, mas sim as essências dos próprios interlocutores, bizarras ou não.

O tomo está dividido em 70 pequenas crônicas que se pretendem “filosóficas”. Papini elabora encontros imaginários com grandes nomes da cultura mundial: Ford, Lenine, Wells, Saint-German, Gandhi, Shaw, Frazer, Knut Hamsum (um dos poucos por quem ele nutre certo apreço e respeito), Pitágoras, entre outras figuras imaginárias que foram criadas para compor um mosaico que traduz seu desprezo descomunal pela cultura contemporânea.

Logo no início do livro, ele nos avisa que procurou visitar as grandes obras-primas da literatura. Fica decepcionado: “O que não entendia, me parecia inútil; o que entendia não me divertia ou me ofendia. Coisas absurdas, cacetes: às vezes insignificantes ou nauseabundas”. E arremata: “Ficou-me, porém, a dúvida de que a literatura seja incapaz de aperfeiçoamentos decisivos: é muito provável que ninguém, daqui a um século, se dedique a uma indústria tão atrasada e pouco rendosa”.

Entretanto, Papini deixa pistas sobre suas preferências. Na crônica O Canibal Arrependido – que conta o estrago que a civilização cristã causou num canibal ao convencê-lo de que comer carne humana não era saudável – está presente o canibal Quiqueg de Melville. Mas sem aquele poder descritivo maravilhoso do americano.

Na crônica Tudo Pequeno, podemos sentir uma presença quase onírica do Gulliver de Swifts. Mas é com Knut Hamsum que ele se identifica mais. Quando está na Noruega, ele decide visitar o famoso escritor que o recebe da maneira mais inusitada: “Consenti em receber o senhor porque o senhor não é nem um mendigo, nem um literato nem um jornalista nem um desocupado nem um editor nem um colecionador de autógrafos nem um admirador. Todos esses são igualmente insuportáveis”. No final da conversa, o escritor norueguês diz: “E o senhor também, apesar de não me ter pedido nada, já me tomou alguma coisa: meia hora do meu tempo e um pouco de minha força. O senhor também é um ladrão honesto, um ladrão bem educado – mas um ladrão”. Papini concorda com as palavras de Hamsum e diz que irá comprar todos os seus livros, pois “assim lhe ressarcirei delicadamente o tempo que perdeu por minha causa”.

Certos pastiches e absurdidades que dão à obra um tom quase burlesco não conseguem retirar do todo algumas qualidades que a mesma possui. Papini é um escritor erudito e, como disse antes, o que há de positivo em sua escrita é exatamente aquilo que ela quer combater. Um espelho invertido. Uma contradição ambulante.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Prolegômenos de Kant



Immanuel Kant é um daqueles pensadores que todo mundo já ouviu falar, mas pouquíssimos leram e entenderam. Alguns tentaram ler e, por não entenderem nada, desistiram. Outros nem se arriscaram diante da fama de infant terrible deste grande filósofo alemão. Mesmo desconhecido fora dos círculos acadêmicos, Kant é extremamente respeitado. Lembro de Nietzsche que dizia que sua autoridade advinha do fato de ninguém o entender. Com Kant é a mesma coisa. Ninguém lê ou entende, mas todo mundo respeita.

Mas há raros momentos em que os grandes filósofos, encimados nas mais altas montanhas do pensamento, decidem ter compaixão por nós, simples mortais, escrevendo uma obra mais leve, “mais fácil”, que possa instruir essa massa de retardados sobre suas ideias. Hegel com sua Estética, Nietzsche com sua Genealogia da Moral, Heidegger com seus Seminários de Zollikon, Foucault com sua Microfísica. Há vários exemplos.

É muito difícil – e não digo impossível por uma questão de educação – que alguém que não possua uma boa formação filosófica consiga entender a Crítica da Razão Pura de Kant. Esta obra basilar do pensamento filosófico Ocidental compõe, ao lado da Crítica da Razão Prática e da Crítica da Faculdade de Julgar, o alicerce monumental do pensamento kantiano e que constitui uma verdadeira convergência do pensamento filosófico que a precedeu. O problema é que a maioria dos leigos começa o enfrentamento com Kant através da primeira Crítica. Isso é covardia.

O momento de bom humor deste pacato cidadão de Königsberg se dá na sua obra Prolegômenos a toda Metafísica Futura. Aqui Kant explica de modo “sucinto” algumas concepções fundamentais que aparecem na Crítitca da Razão Pura, mas despidas dos longos, tortuosos, profundos e difíceis parágrafos que pululam o tempo todo na Crítica. O Kant dos Prolegômenos estava repleto de compaixão por nossa estupidez.

Kant discute as fontes da Metafísica, portanto, do conhecimento, e daí começa a elaborar sua teoria sobre os juízos: sintéticos e analíticos – bem como sua compreensão sobre espaço e tempo, condições a priori de todo conhecimento. Questiona-se sobre a possibilidade da Metafísica e chega à questão inevitável: Como é possível um conhecimento pela razão pura? Explica-nos que a experiência “não é senão uma contínua adição (síntese) das percepções” e explica os fundamentos do conhecimento matemático e a representação de conceitos na intuição, bem como de juízos intuitivos e discursivos, chegando às proposições apodíticas. Para Kant, a intuição “é uma representação que depende imediatamente da presença do objeto”.

Na segunda parte do livro, Kant discorre sobre a possibilidade de uma ciência pura da natureza. A natureza, em Kant, é “a existência das coisas enquanto esta é determinada segundo leis universais”. Então, ele partirá para discutir a necessidade, a experiência, os juízos empíricos, a percepção. É aqui que Kant nos mostra o seu Quadrológico dos Juízos: Segundo a quantidade, qualidade, relação e modalidade. O Quadro transcendental dos conceitos do entendimento: idem e o Quadro fisiológico puro dos princípios gerais da Ciência da Natureza: Axiomas da intuição, Antecipações da percepção, Analogias das experiências e Postulados do pensamento empírico em geral. Uma abordagem nova diante das Categorias de Aristóteles.

Por fim, discutindo a questão transcendental capital – Como é possível a Metafísica em geral – Kant nos brinda com uma explanação “leve” – será isso possível?! – sobre a dialética da Razão Pura e chegando aos limites mesmos desta mesma Razão.

Para quem já se aventurou pelo pensamento de Kant e saiu derrotado ou para quem tem medo dele, aconselho a começar por esta obra. Será um encontro mais amistoso com este monstro do pensamento humano. Monstro, diga-se de passagem, no sentido de grande, maravilhoso, genial. Ler Nietzsche sem conhecer Kant é ler meio Nietzsche. Por isso, creio eu, seria importante conhecer um pouco melhor ou simplesmente começar a conhecer este pensador tão original e responsável por uma verdadeira revolução na nossa tradição e que depois, ainda como hoje, continua sendo amado ou odiado, mas sempre estudado.

domingo, 6 de junho de 2010

Os 120 de Sodoma de Sade


O que o Satyricon de Petrônio, o Decameron de Boccacio, Sexus de Henry Miller, o Açougueiro de Alina Reyes e os poemas de Hilda Hilst possuem em comum com a obra Os 120 de Sodoma do Marquês de Sade? Simples: o sexo. Mas em cada uma dessas obras o sexo é encarado como pano de fundo para as digressões filosóficas, morais e religiosas destes escritores, enquanto que em Sade ele surge de modo inteiramente diverso. O sexo, em Sade, é o limite, o além de toda metafísica, a perversão da mente e do corpo, a transgressão mais radical possível, a negação e afirmação do outro a um só tempo. Nega-se, em Sade, tudo o que é saudável moralmente falando, tudo o que deveria ser tido como certo, tudo o que poderia fundar uma religião de cunho moral. No campo da ciência sexual – seja medicina ou psicanálise – Sade defende o que os outros chamariam de anomalias. Os jogos dos deveres morais, da apreciação estética moralista, do justo e injusto, da beleza e da feiúra, do medo religioso não tomam lugar neste escritor.

Os 120 de Sodoma narra as peripécias de um grupo de libertinos: o Duque de Blanges; seu irmão, o Bispo; Durcet e Curval que se embrenham num castelo - assessorados por quatro “damas”: Madame Duclos, Madame Champville, Madame Martaine e Madame Desgranges que estão ali para auxiliar nossos pervertidos a realizarem todos os seus desejos - após terem seqüestrado 18 jovens (oito meninos e oito meninas) e levado consigo mais oito homens avantajados e quatro criadas. O objetivo destes senhores é multiplicar e ampliar os objetos de seus prazeres, numa busca frenética pelo limite do corpo e da alma, mas isto sem piedade e com requintes de extrema crueldade. Quando as crianças apavoradas estão no primeiro dia no castelo, são recebidas com a seguinte indagação: “Se Deus existe, então ele intercederia por vocês. Mas como Deus não existe, nada neste mundo poderá lhes ajudar a deixar de passar pelo que nós reservamos para vocês!”.

Os amigos bebem a urina das crianças, jantam suas fezes, sodomizam seus corpos e jamais estão satisfeitos. Os horrores que as crianças são obrigadas a fazer se repetem dia a dia no castelo. São tratadas como cachorros, apanham, são torturadas, obrigadas a fazerem coisas repulsivas e degradantes. Os amigos, senhores de tudo por ali, debatem sobre como ampliar ainda mais seus prazeres, sempre insatisfeitos diante de uma sede incomensurável que os acomete sempre. Nada consegue satisfazer este apetite ancestral e tudo parece pouco diante desta fome de séculos.

Por fim, os amigos escandalizam as torturas: enfiam tubos nos ânus das crianças e colocam um rato faminto no mesmo; infectam-nas com doenças; obrigam-nas a correrem nuas no jardim durante um inverno rigoroso; esbofeteiam suas partes íntimas; colocam montículos de pólvora sobre seus corpos e depois incendeiam; sangram-nas e escarificam suas peles; achatam seus pés com um martelo pesado; crucificam as crianças, etc. A lista é enorme.

Sade relata, sem pudor algum, o lado mais “obscuro” do desejo humano. Deixa um legado incomum de coragem ao falar do que deveria sempre ser calado. Sua obra permanece atual porque o lugar do desejo é sempre atemporal: o outro. Mas aqui, através de uma visão quase irreal, o outro é o mesmo. Realmente, eu recomendo, mas apenas para quem possuir estômago forte.